Capítulo 8
8. CRIME
Ninguém o interrogara. Ninguém o detera. Havia esta vantagem, de qualquer forma, na isolação social de um Técnico. Através dos canais de caldeira, ele foi a uma porta para o Tempo e ajustou seus controles. Havia a possibilidade, naturalmente, de aparecer alguém em missão legítima e querer saber por que a porta estava em uso. Ele hesitou um momento e então decidiu colocar sua identificação no marcador. Uma porta com identificação chamaria pouca atenção. Uma porta sem identificação e em uso ativo causaria excessiva curiosidade.
É claro que poderia ser Finge a topar com a porta. Ele teria de arriscar.
Noys ainda estava como ele a havia deixado. Haviam-se passado algumas horas (fisio-horas) desde que Harlan saíra do século 482 para uma Eternidade solitária, mas então ele retornou para o mesmo Tempo, em uma questão de segundos, do qual havia saído. Nem sequer um cabelo de Noys havia-se mexido.
Ela pareceu surpresa. - Esqueceu algo, Andrew?
Harlan fitou-a ansiosamente, mas não fez movimento algum para tocá-la. Lembrou-se das palavras de Finge e não ousou arriscar-se a uma repulsão. - Você tem de fazer o que Vou dizer - disse ele decididamente.
- Mas há algo de errado, então? - disse ela. - Você acabou de sair. Você acabou de sair neste minuto.
- Não se preocupe - disse Harlan. Foi tudo que pôde fazer para evitar de tomar a mão dela, de tentar confortá-la. Ao invés, ele falou asperamente. Era como se um demônio o estivesse forçando a fazer todas as coisas erradas. Por que tinha ele voltado no primeiro momento acessível? Ele apenas a estava perturbando com seu retorno quase instantâneo após sair.
(Ele sabia a resposta daquilo, realmente. Ele tinha uma margem de tolerância de dois dias, permitida pelo mapa espaço-temporal. As primeiras porções daquele período de tolerância eram mais seguras e deixavam menor possibilidade de descoberta. Era uma tendência natural insistir em atingir o ponto mais baixo possível da escala do tempo. Entretanto, um risco tolo, também. Ele poderia facilmente ter calculado mal e entrado no Tempo antes que tivesse saído dele físio-horas antes. E então? Era uma das primeiras regras que tinha aprendido como Observador: uma pessoa, ocupando dois pontos no mesmo Tempo da mesma Realidade, corre o risco de se encontrar consigo mesmo.
Era algo a ser evitado de qualquer forma. Por quê? Harlan sabia que não queria encontrar-se consigo mesmo. Não queria estar olhando dentro dos olhos de um outro Harlan, anterior ou posterior a ele. Além de tudo, isto seria um paradoxo, e o que era aquilo que Twissell gostava de dizer? "Não há paradoxos no Tempo, apenas porque o Tempo evita deliberadamente os paradoxos.")
Durante todo o tempo em que Harlan estivera pensando vertiginosamente em tudo isso, Noys fitara-o com olhos grandes e luminosos.
Então ela veio até ele, colocou as mãos frias em cada uma de suas faces ardentes e disse brandamente: - Você está em dificuldades.
A Harlan seu olhar pareceu amável e amoroso. Contudo, como podia ser isso? Ela tinha tudo que desejava. O que mais havia? Ele agarrou os pulsos dela e disse roucamente:
- Quer vir comigo? Agora? Sem fazer perguntas? Fazendo exatamente como eu disser?
- Devo? - perguntou ela.
- Você deve, Noys. É muito importante.
- Então irei - ela respondeu de maneira vulgar, como se recebesse tais pedidos a cada dia e sempre os aceitasse.
Na porta da caldeira, Noys hesitou um momento, e então entrou.
- Vamos subir na escala do Tempo, Noys - disse Harlan.
- Isso significa o futuro, não é?
A caldeira já estava zunindo baixinho quando ela entrou, e ela mal estava sentada quando Harlan moveu discretamente o contato à mão.
Ela não mostrou sinais de náusea no princípio daquela sensação indescritível de "movimento" através do Tempo. Ele temia que ela pudesse mostrar.
Ela sentou-se ali, em silêncio, tão linda e tão à vontade, que ele se sentiu sofrer, olhando para ela, e não deu nem um pinquinho de importância ao fato de que, por trazer uma Tempista à Eternidade, sem autorização, havia cometido um delito grave.
- Este mostrador indica os números dos anos, Andrew? - perguntou ela.
- Dos séculos.
- Você quer dizer que estamos mil anos no futuro? Já?
- Exatamente.
- Não parece.
- Eu sei.
Ela olhou ao redor. - Mas como estamos nos movendo?
- Não sei, Noys.
- Você não sabe?
- Há várias coisas relacionadas à Eternidade que são difíceis de se entender.
Os números do temporômetro marchavam. Moveram-se mais e mais rapidamente até que se tornaram um borrão. com o cotovelo, Harlan havia empurrado a alavanca de velocidade para cima. A absorção de energia poderia causar alguma surpresa nas usinas de força, mas ele duvidava disso. Ninguém o estivera esperando na Eternidade, quando ele retornou com Noys, e isso era nove décimos da batalha. Agora, somente era necessário levá-la para um lugar seguro.
Harlan olhou novamente para ela. - Os Eternos não sabem tudo.
- E eu não sou Eterna - murmurou ela. - Sei tão pouco.
As pulsações de Harlan aceleraram-se. Ainda não é Eterna? Mas Finge disse...
Deixe estar, argumentou ele consigo mesmo. Deixe estar. Ela está indo com você. Ela sorri para você. O que mais você quer?
Mas ele falou, de qualquer forma. - Você acha que os Eternos vivem para sempre, não acha? - disse ele.
- Bem, chamam-nos Eternos, sabe, e todos dizem que eles vivem - ela sorriu alegremente para ele. - Mas eles não vivem, vivem?
- Você acha que não, então?
- Após ficar uns tempos na Eternidade, achei que não. As pessoas não falavam como se vivessem para sempre, e havia velhos, lá.
- Contudo, você me disse que eu vivia para sempre... naquela noite.
Ela se moveu para mais perto dele, no banco, ainda sorrindo. - Eu pensei: quem sabe?
- Como os Tempistas acham que podem tornar-se Eternos? - perguntou ele, sem ser totalmente capaz de reprimir a tensão da voz.
O sorriso de Noys desapareceu e seria sua imaginação ou havia realmente um traço de cor intensificada em sua face? - Por que o pergunta? - disse ela.
- Para saber.
- É tolice - disse ela. - Eu preferiria não falar a respeito.
Ela abaixou o olhar para seus dedos graciosos, terminados por unhas que brilhavam de modo incolor na claridade silenciosa da coluna da caldeira. De maneira distraída e totalmente a propósito de nada, Harlan imaginou que, numa reunião noturna, com um toque de ultravioleta suave na iluminação da parede, aquelas unhas brilhariam em um delicado verde-claro ou em vermelho berrante, dependendo do ângulo em que ela colocasse as mãos. Uma garota inteligente, uma como Noys, poderia produzir meia dúzia de sombras com elas e fazer as cores parecerem estar refletindo seus sentimentos. O azul para a inocência, o amareloclaro para a alegria, violeta para a tristeza e escarlate para a paixão.
- Por que você fez amor comigo? - perguntou ele. Ela jogou os cabelos para trás e olhou-o com rosto pálido e sério. - Se quer saber - disse ela - parte do motivo foi a teoria de que, dessa forma, uma garota pode tornar-se Eterna. Eu não me importaria em viver para sempre.
- Pensei que você havia dito que não acreditava nisso.
- Eu não acreditava, mas não fazia mal arriscar. Especialmente...
Ele a estava fitando duramente, buscando refúgio da dor e desapontamento em um frio olhar de desaprovação, do alto da moralidade de seu século natal. - Bem?
- Especialmente desde que eu queria, de qualquer forma.
- Queria fazer amor comigo?
- Sim.
- Por que comigo?
- Porque gostei de você. Achei você engraçado.
- Engraçado!
- Bem, esquisito, se você prefere. Você sempre fez tanto esforço para não me olhar, mas sempre me olhou, de qualquer forma. Você tentou odiar-me, e pude notar que me desejava. Eu estava com um pouco de pena de você, creio.
- Por que você estava com pena? - ele sentiu as faces queimando.
- Porque você deveria ter algum problema quanto a desejar-me. É uma coisa tão simples. Apenas peça para uma garota. É tão fácil ser amigável. Por que sofrer?
Harlan balançou a cabeça. A moralidade do século 482! - Apenas peça para uma garota - murmurou ele. - Tão simples. Nada mais é necessário.
- A garota tem de estar querendo, é claro. Na maioria das vezes, ela está, se não estiver, de certa forma, comprometida. Por que não? É bem simples.
Foi a vez de Harlan de abaixar os olhos. Era bem simples, naturalmente. E nada errado com isso, também. Não no século 482. Na Eternidade, quem saberia disso melhor?
Ele seria um idiota, um completo e indescritível idiota, se perguntasse a ela agora sobre romances anteriores. Poderia ele, da mesma forma, perguntar a uma garota de seu próprio século, se ela alguma vez já havia comido na presença de um homem e como ousara?
Ao invés, ele disse humildemente: - E o que pensa de mim, agora?
- Que você é atraente - disse ela amavelmente - e que se você relaxasse... Não quer sorrir?
- Não há por que sorrir, Noys.
- Por favor. Quero ver se suas bochechas se enrugam direito. Vejamos.
Ela colocou os dedos nos cantos da boca de Harlan e pressionouos para trás. Ele sacudiu a cabeça para trás, em surpresa, e não pôde deixar de sorrir.
- Veja. Suas bochechas nem mesmo se quebram. Você é quase bonito. com bastante prática, ficando em frente ao espelho, sorrindo e dando uma piscadela, aposto que você poderia ser realmente bonito.
Mas o sorriso, frágil demais como começo, desapareceu.
- Estamos em dificuldades, não estamos? - disse Noys.
- Sim, estamos, Noys. Grandes dificuldades.
- Por causa do que fizemos? Você e eu? Naquela noite?
- Não realmente.
- Foi culpa minha, eu sei. Direi isso a eles, se você quiser.
- Nunca - disse Harlan com energia. - Não assuma qualquer culpa nisso. Você não fez nada, nada, pelo que ser culpada. É outra coisa.
Noys olhou preocupadamente o temporômetro. - Onde estamos? Não consigo nem mesmo ver os números.
- Quando estamos? - corrigiu Harlan automaticamente. Diminuiu a velocidade e os séculos tornaram-se visíveis.
Os lindos olhos de Noys arregalaram-se e seus cílios contrastaram com a brancura de sua pele. - Isso está correto?
Harlan olhou casualmente para o indicador. Estava num dos séculos 72.000. - Estou certo de que sim.
- Para onde estamos indo?
- Para quando estamos indo. Para o distante futuro - disse ele severamente. - bom e distante. Onde eles não a encontrarão.
E em silêncio, eles observaram os números aumentarem. Em silêncio, Harlan repetiu várias vezes consigo mesmo que a garota era inocente, quanto à acusação de Finge.
Ela havia reconhecido francamente a verdade parcial de acusação e tinha admitido, com a mesma franqueza, a presença de uma atração mais pessoal.
Ele levantou os olhos, então, quando Noys mudou de posição. Ela havia passado para o lado dele da caldeira e, com um gesto resoluto, fizera com que esta parasse, na mais desconfortável diminuição de velocidade temporal.
Harlan ofegou e fechou os olhos, para deixar a náusea passar. - Qual é o problema? - disse ele.
Ela pareceu pálida e por um momento não respondeu. Então ela disse: - Não quero ir adiante. Os números estão tão altos.
O temporômetro indicava: 111.394.
- Bem longe - disse ele.
Então ele estendeu a mão gravemente: - Venha, Noys. Este será seu lar por uns tempos.
Eles percorreram os corredores como crianças, de mãos dadas. As luzes ao longo das galerias estavam acesas, e as salas escurecidas iluminaram-se ao toque de um contato.
O ar estava fresco e havia uma vivacidade ao redor que, mesmo sem esboço sensível, indicava a presença de ventilação.
- Não há ninguém aqui? - murmurou Noys.
- Ninguém - disse Harlan. Tentou dizê-lo firmemente e em voz alta. Queria quebrar a fascinação de estar num "Século Obscuro", mas disse-o apenas num sussurro, afinal.
Ele nem mesmo sabia como referir-se a algo tão distante no futuro. Seria ridículo chamá-lo de um-um-um-três-nonagésimo-quarto século. Ter-se-ia de dizer, simplesmente, de maneira indefinida: "Os cem mil."
Era um problema tolo demais com que se preocupar, mas agora que a exaltação da verdadeira fuga havia terminado, ele se encontrou sozinho numa região da Eternidade onde nenhum pé humano tinha pisado, e não gostou disso. Ele estava envergonhado, duplamente envergonhado, desde que Noys era testemunha, pelo fato de que o ligeiro arrepio dentro dele era o ligeiro arrepio de um leve temor.
- É tão limpo - disse Noys. - Não há poeira.
- Autolimpeza - disse Harlan. com um esforço que pareceu romper suas cordas vocais, ele ergueu a voz até o nível quase normal. - Mas não há ninguém aqui, acima ou abaixo na escala do Tempo, por milhares e milhares de séculos.
Noys pareceu aceitar isso. - E tudo é assim tão bem cuidado? Passamos por depósitos de alimentos e por uma biblioteca de filmes de projeção. Você os viu?
- Vi. Oh, está completamente equipado. Estão todos completamente equipados. Todos os Setores.
- Mas por que, se ninguém vem aqui?
- É lógico - disse Harlan. Falar sobre isso afastava um pouco o medo. Dizer em voz alta o que já sabia na teoria simplificaria o assunto, fá-lo-ia descer ao nível do prosaico. Ele disse: - No princípio da história da Eternidade, um dos séculos 300 apareceu com um duplicador de massa. Sabe o que quero dizer? Estabelecendo-se um campo ressonante, a energia podia ser convertida em matéria, com as partículas subatômicas assumindo precisamente o mesmo padrão de posições, dentro das exigências de dúvida, como aquelas do modelo em uso. O resultado é uma cópia exata.
- Nós da Eternidade requisitamos o instrumento para nossos próprios propósitos. Naquele tempo, havia somente cerca de seiscentos ou setecentos Setores construídos.
Tínhamos planos de expansão, é claro. "Dez novos Setores por fisioano" era um dos lemas do tempo. O duplicador de massa tornou tudo isso desnecessário. Construímos um novo Setor completo, com alimento, suprimento de energia, suprimento de água, com todas as melhores características automáticas; montamos a máquina e duplicamos o Setor uma vez para cada século, durante toda a Eternidade. Não sei por quanto tempo continuaram o processo... milhões de séculos, provavelmente.
- Todos como este, Andrew?
- Todos exatamente como este. E à medida que a Eternidade se expande, nós apenas os retocamos, adaptando a construção para qualquer estilo que se verifique ser corrente no século. Os únicos problemas aparecem quando atingimos um século concentrado em energia. Nós... nós ainda não alcançamos este Setor.
(Não podia dizer a ela que os Eternos não conseguiam penetrar no Tempo ali, nos Séculos Obscuros. Que diferença fazia isso?)
Ele a fitou e ela pareceu preocupada. - Não há gastos envolvidos na construção dos Setores - disse ele precipitadamente. - Gasta energia, nada mais, e podendo-se contar com a nova...
- Não. Simplesmente não me lembro - interrompeu ela.
- Não se lembra de quê?
- Você disse que o duplicador foi inventado num dos séculos. Não o temos no 482. Não me lembro de ter visto coisa alguma a respeito na história.
Harlan ficou pensativo. Embora faltasse a ela apenas cinco centímetros para ter altura igual à sua, ele sentiu-se subitamente do tamanho de um gigante, por comparação.
Ela era uma menina, uma criança, e ele um semideus da Eternidade que devia ensiná-la e conduzi-la cuidadosamente à verdade.
- Noys, querida - disse ele - achemos um lugar para sentar e... e terei de explicar algo.
A concepção de uma Realidade variável, uma Realidade que não era fixa, eterna e imutável, não podia ser encarada casualmente por qualquer pessoa.
No silêncio do sono, às vezes, Harlan lembrava-se dos primeiros dias de seu Aprendizado e recordava as violentas tentativas de divorciar-se de seu século e do Tempo.
Levava seis meses para o Aprendiz mediano chegar a saber toda a verdade, descobrir que nunca poderia ir para casa novamente de uma forma bem literal. Não era a lei da Eternidade, somente, que o impedia, mas o duro fato de que o lar, como ele o conhecia, poderia muito bem não mais existir; poderia, em certo sentido, nunca ter existido.
Isso afetava os Aprendizes diferentemente. Harlan lembrava-se do rosto de Bonky Latourette ficando branco e desolado, no dia em que o Instrutor Yarrow havia tornado isso inequivocamente claro acerca da Realidade.
Nenhum dos Aprendizes comeu, naquela noite. Eles se amontoaram em busca de uma espécie de calor psíquico, todos menos Latourette, que havia desaparecido. Houve um bocado de riso falso e brincadeiras miseravelmente sem graça.
Alguém disse com uma voz trêmula e incerta: - Suponho que nunca tive mãe. Se eu voltasse ao século 95, eles diriam: "Quem é você? Não o conhecemos. Não temos nenhum registro seu. Você não existe."
Eles sorriram debilmente e sacudiram as cabeças, rapazes solitários, a quem nada sobrou senão a Eternidade.
Eles encontraram Latourette, na hora de dormir, em sono profundo e respirando levemente. Havia o leve avermelhado de um injeção-spray na concavida de seu cotovelo esquerdo e, felizmente, isso também foi notado.
Yarrow foi chamado e, por uns tempos, pareceu que um Aprendiz saíra do curso, mas ele foi trazido de volta, eventualmente. Uma semana depois, ele estava de volta ao seu lugar. Contudo, a marca daquela má noite ficou em sua personalidade durante todo o tempo em que Harlan esteve relacionado com ele, depois disso.
E agora Harlan tinha de explicar a Realidade para Noys Lambent, uma garota não muito mais velha do que aqueles Aprendizes, e explicá-la de imediato e por completo.
Ele tinha de fazê-lo. Não havia escolha quanto a isso. Ela devia saber exatamente o que se lhes apresentava e exatamente o que ela teria de fazer.
Ele lhe contou. Eles comeram alimentos enlatados, frutas congeladas e leite, em uma longa mesa de conferência designada a comportar doze, e lá ele lhe contou.
Ele o fez tão gentilmente quanto possível, mas mal achava necessidade de gentileza. Ela agarrou rapidamente cada idéia e, antes que ele estivesse na metade, deu-se conta, para seu grande espanto, de que ela não estava reagindo de maneira ruim. Ela não estava com medo. Não mostrava sentimento de perda. Ela apenas parecia zangada.
A zanga alcançou seu rosto e transformou-o em um vermelho incandescente, enquanto seus olhos escuros pareciam de alguma forma mais escuros por isso.
- Mas isto é crime - disse ela. - Quem são os Eternos para fazer isso?
- Isso é feito para o bem da humanidade - disse Harlan. É claro que ela não podia realmente entender aquilo. Ele se sentiu pesaroso pelo pensamento limitado ao Tempo de uma Tempista.
- É? Suponho que foi assim que o duplicador de massa foi eliminado.
- Ainda temos cópias. Não se preocupe com isso. Nós o preservamos.
- Vocês o preservaram. Mas e nós? Nós do 482 poderíamos tê-lo tido - ela gesticulou com pequenos movimentos de dois punhos cerrados.
- Isso não teria feito bem a vocês. Olhe, não fique excitada, querida, e ouça. com um gesto quase convulsivo (ele teria de aprender como tocá-la naturalmente, sem fazer o movimento parecer um tímido convite para uma repulsa), tomou as mãos dela nas suas e segurou-as firmemente.
Por um momento ela tentou libertá-las, e então relaxou. Ela até mesmo sorriu um pouco. - Oh, continue, bobinho, e não faça essa cara tão séria. Não estou culpando você.
- Você não deve culpar ninguém. Não há culpa necessária. Fizemos o que devia ser feito. Aquele dupli-cador de massa é um caso clássico. Eu o estudei na escola.
Quando se duplica massa, pode-se duplicar pessoas, também. Os problemas que surgem são muito complicados.
- Não está a cargo da sociedade resolver seus próprios problemas?
- Está, mas nós estudamos aquela sociedade durante todo o Tempo e ela não resolveu o problema satisfatoriamente. Lembre-se de que seu fracasso em resolvê-lo afeta não somente ela própria, mas também todas as suas sociedades descendentes. Na verdade, não há solução satisfatória para o problema do duplicator de massa.
Esta é uma daquelas coisas, como guerras atômicas e sonhadores, que simplesmente não podem ser toleradas. Os desenvolvimentos nunca são satisfatórios.
- O que o faz tão certo?
- Temos nossas máquinas de Computação, Noys; computaplex muito mais precisos do que qualquer um já desenvolvido em qualquer Realidade individual. Estes Computam as Realidades possíveis e classificam as desejabilidades de cada uma delas, através da edição de milhares e milhares de variáveis.
- Máquinas! - disse ela com desprezo.
Harlan mostrou desagrado, e então abrandou-se apressadamente. - Agora, não fique assim. Naturalmente, você se ressente por descobrir que a vida não é tão sólida como você pensava. Você e o mundo em que você viveu poderiam ter sido apenas uma sombra de probabilidade, um ano atrás, mas qual a diferença? Você tem todas as suas lembranças, sejam elas de sombras de probabilidade ou não, não tem? Você se lembra de sua infância, de seus pais, não se lembra?
- É claro.
- Então é exatamente como se você a viveu, não é? Não é? Quero dizer, se você viveu ou não?
- Eu não sei. Terei de pensar a respeito. E daí se amanhã fosse um mundo de sonho novamente, ou uma sombra, ou o que for que você chame isso?
- Então haveria uma nova Realidade e uma nova você, com novas lembranças. Seria exatamente como se nada tivesse acontecido, exceto que o total de felicidade humana teria sido aumentado novamente.
- Não acho isso de forma alguma satisfatório.
- Além disso - disse Harlan precipitadamente - nada lhe acontecerá agora. Haverá uma nova Realidade, mas você está na Eternidade. Você não será mudada.
- Mas você disse que não faz diferença - disse Noys meiancolicamente. - Por que dar-se a todo esse trabalho?
- Porque eu quero você como você é - disse Harlan, com súbito ardor. - Exatamente como você é. Não quero você mudada. Em forma alguma.
Ele chegou ao ponto de quase deixar escapar a verdade, que sem a vantagem da superstição sobre os Eternos e a vida eterna, ela nunca teria se inclinado a ele.
Olhando em volta com leve desagrado, ela disse: - Terei de ficar aqui para sempre, então? Seria... solitário.
- Não, não. Nem pense nisso - disse ele freneticamente, agarrando suas mãos com tanta força que ela estremeceu. - Descobrirei o que você será na nova Realidade do século
482, e você voltará disfarçada, por assim dizer. Tomarei conta de você. Pedirei permissão para ligação formal e cuidarei para que você continue em segurança através de futuras Mudanças. Sou um Técnico, um bom Técnico, e sei a respeito de Mudanças - ele acrescentou severamente - e sei algumas outras coisas, também - e parou aí.
- Isso tudo é permitido? - perguntou Noys. - Quero dizer, você pode trazer as pessoas para a Eternidade e impedi-las de mudar? Isso não parece correto, de forma alguma, pelas coisas que você me contou.
Por um momento Harlan sentiu-se encolhido e frio no imenso vazio dos milhares de séculos que o rodeavam por cima e por baixo. Por um momento, ele se sentiu excluído até mesmo da Eternidade, que era seu único lar e única fé, duplamente banido do Tempo e da Eternidade; e ficava a seu lado somente a mulher pela qual ele havia abandonado tudo isso.
Ele disse, e sentia isso profundamente: - Não, isto é um crime. É um crime muito grande, e estou amargamente arrependido. Mas eu o cometeria novamente, se tivesse de fazê-lo, e qualquer número de vezes, se tivesse de fazê-lo.
- Por mim, Andrew? Por mim?
Ele não ergueu seus olhos para os dela. - Não, Noys, por mim mesmo. Eu não poderia suportar o fato de perder você.
- E se formos apanhados...? - perguntou ela.
Harlan sabia a resposta para aquilo. Ele sabia a resposta desde aquele momento de introspecção, na cama, no século 482, com Noys dormindo ao seu lado. Mas, mesmo assim, não ousava pensar na bárbara verdade.
- Não tenho medo de ninguém - disse ele. - Tenho meios de me proteger. Eles não imaginam quanto sei.
Ninguém o interrogara. Ninguém o detera. Havia esta vantagem, de qualquer forma, na isolação social de um Técnico. Através dos canais de caldeira, ele foi a uma porta para o Tempo e ajustou seus controles. Havia a possibilidade, naturalmente, de aparecer alguém em missão legítima e querer saber por que a porta estava em uso. Ele hesitou um momento e então decidiu colocar sua identificação no marcador. Uma porta com identificação chamaria pouca atenção. Uma porta sem identificação e em uso ativo causaria excessiva curiosidade.
É claro que poderia ser Finge a topar com a porta. Ele teria de arriscar.
Noys ainda estava como ele a havia deixado. Haviam-se passado algumas horas (fisio-horas) desde que Harlan saíra do século 482 para uma Eternidade solitária, mas então ele retornou para o mesmo Tempo, em uma questão de segundos, do qual havia saído. Nem sequer um cabelo de Noys havia-se mexido.
Ela pareceu surpresa. - Esqueceu algo, Andrew?
Harlan fitou-a ansiosamente, mas não fez movimento algum para tocá-la. Lembrou-se das palavras de Finge e não ousou arriscar-se a uma repulsão. - Você tem de fazer o que Vou dizer - disse ele decididamente.
- Mas há algo de errado, então? - disse ela. - Você acabou de sair. Você acabou de sair neste minuto.
- Não se preocupe - disse Harlan. Foi tudo que pôde fazer para evitar de tomar a mão dela, de tentar confortá-la. Ao invés, ele falou asperamente. Era como se um demônio o estivesse forçando a fazer todas as coisas erradas. Por que tinha ele voltado no primeiro momento acessível? Ele apenas a estava perturbando com seu retorno quase instantâneo após sair.
(Ele sabia a resposta daquilo, realmente. Ele tinha uma margem de tolerância de dois dias, permitida pelo mapa espaço-temporal. As primeiras porções daquele período de tolerância eram mais seguras e deixavam menor possibilidade de descoberta. Era uma tendência natural insistir em atingir o ponto mais baixo possível da escala do tempo. Entretanto, um risco tolo, também. Ele poderia facilmente ter calculado mal e entrado no Tempo antes que tivesse saído dele físio-horas antes. E então? Era uma das primeiras regras que tinha aprendido como Observador: uma pessoa, ocupando dois pontos no mesmo Tempo da mesma Realidade, corre o risco de se encontrar consigo mesmo.
Era algo a ser evitado de qualquer forma. Por quê? Harlan sabia que não queria encontrar-se consigo mesmo. Não queria estar olhando dentro dos olhos de um outro Harlan, anterior ou posterior a ele. Além de tudo, isto seria um paradoxo, e o que era aquilo que Twissell gostava de dizer? "Não há paradoxos no Tempo, apenas porque o Tempo evita deliberadamente os paradoxos.")
Durante todo o tempo em que Harlan estivera pensando vertiginosamente em tudo isso, Noys fitara-o com olhos grandes e luminosos.
Então ela veio até ele, colocou as mãos frias em cada uma de suas faces ardentes e disse brandamente: - Você está em dificuldades.
A Harlan seu olhar pareceu amável e amoroso. Contudo, como podia ser isso? Ela tinha tudo que desejava. O que mais havia? Ele agarrou os pulsos dela e disse roucamente:
- Quer vir comigo? Agora? Sem fazer perguntas? Fazendo exatamente como eu disser?
- Devo? - perguntou ela.
- Você deve, Noys. É muito importante.
- Então irei - ela respondeu de maneira vulgar, como se recebesse tais pedidos a cada dia e sempre os aceitasse.
Na porta da caldeira, Noys hesitou um momento, e então entrou.
- Vamos subir na escala do Tempo, Noys - disse Harlan.
- Isso significa o futuro, não é?
A caldeira já estava zunindo baixinho quando ela entrou, e ela mal estava sentada quando Harlan moveu discretamente o contato à mão.
Ela não mostrou sinais de náusea no princípio daquela sensação indescritível de "movimento" através do Tempo. Ele temia que ela pudesse mostrar.
Ela sentou-se ali, em silêncio, tão linda e tão à vontade, que ele se sentiu sofrer, olhando para ela, e não deu nem um pinquinho de importância ao fato de que, por trazer uma Tempista à Eternidade, sem autorização, havia cometido um delito grave.
- Este mostrador indica os números dos anos, Andrew? - perguntou ela.
- Dos séculos.
- Você quer dizer que estamos mil anos no futuro? Já?
- Exatamente.
- Não parece.
- Eu sei.
Ela olhou ao redor. - Mas como estamos nos movendo?
- Não sei, Noys.
- Você não sabe?
- Há várias coisas relacionadas à Eternidade que são difíceis de se entender.
Os números do temporômetro marchavam. Moveram-se mais e mais rapidamente até que se tornaram um borrão. com o cotovelo, Harlan havia empurrado a alavanca de velocidade para cima. A absorção de energia poderia causar alguma surpresa nas usinas de força, mas ele duvidava disso. Ninguém o estivera esperando na Eternidade, quando ele retornou com Noys, e isso era nove décimos da batalha. Agora, somente era necessário levá-la para um lugar seguro.
Harlan olhou novamente para ela. - Os Eternos não sabem tudo.
- E eu não sou Eterna - murmurou ela. - Sei tão pouco.
As pulsações de Harlan aceleraram-se. Ainda não é Eterna? Mas Finge disse...
Deixe estar, argumentou ele consigo mesmo. Deixe estar. Ela está indo com você. Ela sorri para você. O que mais você quer?
Mas ele falou, de qualquer forma. - Você acha que os Eternos vivem para sempre, não acha? - disse ele.
- Bem, chamam-nos Eternos, sabe, e todos dizem que eles vivem - ela sorriu alegremente para ele. - Mas eles não vivem, vivem?
- Você acha que não, então?
- Após ficar uns tempos na Eternidade, achei que não. As pessoas não falavam como se vivessem para sempre, e havia velhos, lá.
- Contudo, você me disse que eu vivia para sempre... naquela noite.
Ela se moveu para mais perto dele, no banco, ainda sorrindo. - Eu pensei: quem sabe?
- Como os Tempistas acham que podem tornar-se Eternos? - perguntou ele, sem ser totalmente capaz de reprimir a tensão da voz.
O sorriso de Noys desapareceu e seria sua imaginação ou havia realmente um traço de cor intensificada em sua face? - Por que o pergunta? - disse ela.
- Para saber.
- É tolice - disse ela. - Eu preferiria não falar a respeito.
Ela abaixou o olhar para seus dedos graciosos, terminados por unhas que brilhavam de modo incolor na claridade silenciosa da coluna da caldeira. De maneira distraída e totalmente a propósito de nada, Harlan imaginou que, numa reunião noturna, com um toque de ultravioleta suave na iluminação da parede, aquelas unhas brilhariam em um delicado verde-claro ou em vermelho berrante, dependendo do ângulo em que ela colocasse as mãos. Uma garota inteligente, uma como Noys, poderia produzir meia dúzia de sombras com elas e fazer as cores parecerem estar refletindo seus sentimentos. O azul para a inocência, o amareloclaro para a alegria, violeta para a tristeza e escarlate para a paixão.
- Por que você fez amor comigo? - perguntou ele. Ela jogou os cabelos para trás e olhou-o com rosto pálido e sério. - Se quer saber - disse ela - parte do motivo foi a teoria de que, dessa forma, uma garota pode tornar-se Eterna. Eu não me importaria em viver para sempre.
- Pensei que você havia dito que não acreditava nisso.
- Eu não acreditava, mas não fazia mal arriscar. Especialmente...
Ele a estava fitando duramente, buscando refúgio da dor e desapontamento em um frio olhar de desaprovação, do alto da moralidade de seu século natal. - Bem?
- Especialmente desde que eu queria, de qualquer forma.
- Queria fazer amor comigo?
- Sim.
- Por que comigo?
- Porque gostei de você. Achei você engraçado.
- Engraçado!
- Bem, esquisito, se você prefere. Você sempre fez tanto esforço para não me olhar, mas sempre me olhou, de qualquer forma. Você tentou odiar-me, e pude notar que me desejava. Eu estava com um pouco de pena de você, creio.
- Por que você estava com pena? - ele sentiu as faces queimando.
- Porque você deveria ter algum problema quanto a desejar-me. É uma coisa tão simples. Apenas peça para uma garota. É tão fácil ser amigável. Por que sofrer?
Harlan balançou a cabeça. A moralidade do século 482! - Apenas peça para uma garota - murmurou ele. - Tão simples. Nada mais é necessário.
- A garota tem de estar querendo, é claro. Na maioria das vezes, ela está, se não estiver, de certa forma, comprometida. Por que não? É bem simples.
Foi a vez de Harlan de abaixar os olhos. Era bem simples, naturalmente. E nada errado com isso, também. Não no século 482. Na Eternidade, quem saberia disso melhor?
Ele seria um idiota, um completo e indescritível idiota, se perguntasse a ela agora sobre romances anteriores. Poderia ele, da mesma forma, perguntar a uma garota de seu próprio século, se ela alguma vez já havia comido na presença de um homem e como ousara?
Ao invés, ele disse humildemente: - E o que pensa de mim, agora?
- Que você é atraente - disse ela amavelmente - e que se você relaxasse... Não quer sorrir?
- Não há por que sorrir, Noys.
- Por favor. Quero ver se suas bochechas se enrugam direito. Vejamos.
Ela colocou os dedos nos cantos da boca de Harlan e pressionouos para trás. Ele sacudiu a cabeça para trás, em surpresa, e não pôde deixar de sorrir.
- Veja. Suas bochechas nem mesmo se quebram. Você é quase bonito. com bastante prática, ficando em frente ao espelho, sorrindo e dando uma piscadela, aposto que você poderia ser realmente bonito.
Mas o sorriso, frágil demais como começo, desapareceu.
- Estamos em dificuldades, não estamos? - disse Noys.
- Sim, estamos, Noys. Grandes dificuldades.
- Por causa do que fizemos? Você e eu? Naquela noite?
- Não realmente.
- Foi culpa minha, eu sei. Direi isso a eles, se você quiser.
- Nunca - disse Harlan com energia. - Não assuma qualquer culpa nisso. Você não fez nada, nada, pelo que ser culpada. É outra coisa.
Noys olhou preocupadamente o temporômetro. - Onde estamos? Não consigo nem mesmo ver os números.
- Quando estamos? - corrigiu Harlan automaticamente. Diminuiu a velocidade e os séculos tornaram-se visíveis.
Os lindos olhos de Noys arregalaram-se e seus cílios contrastaram com a brancura de sua pele. - Isso está correto?
Harlan olhou casualmente para o indicador. Estava num dos séculos 72.000. - Estou certo de que sim.
- Para onde estamos indo?
- Para quando estamos indo. Para o distante futuro - disse ele severamente. - bom e distante. Onde eles não a encontrarão.
E em silêncio, eles observaram os números aumentarem. Em silêncio, Harlan repetiu várias vezes consigo mesmo que a garota era inocente, quanto à acusação de Finge.
Ela havia reconhecido francamente a verdade parcial de acusação e tinha admitido, com a mesma franqueza, a presença de uma atração mais pessoal.
Ele levantou os olhos, então, quando Noys mudou de posição. Ela havia passado para o lado dele da caldeira e, com um gesto resoluto, fizera com que esta parasse, na mais desconfortável diminuição de velocidade temporal.
Harlan ofegou e fechou os olhos, para deixar a náusea passar. - Qual é o problema? - disse ele.
Ela pareceu pálida e por um momento não respondeu. Então ela disse: - Não quero ir adiante. Os números estão tão altos.
O temporômetro indicava: 111.394.
- Bem longe - disse ele.
Então ele estendeu a mão gravemente: - Venha, Noys. Este será seu lar por uns tempos.
Eles percorreram os corredores como crianças, de mãos dadas. As luzes ao longo das galerias estavam acesas, e as salas escurecidas iluminaram-se ao toque de um contato.
O ar estava fresco e havia uma vivacidade ao redor que, mesmo sem esboço sensível, indicava a presença de ventilação.
- Não há ninguém aqui? - murmurou Noys.
- Ninguém - disse Harlan. Tentou dizê-lo firmemente e em voz alta. Queria quebrar a fascinação de estar num "Século Obscuro", mas disse-o apenas num sussurro, afinal.
Ele nem mesmo sabia como referir-se a algo tão distante no futuro. Seria ridículo chamá-lo de um-um-um-três-nonagésimo-quarto século. Ter-se-ia de dizer, simplesmente, de maneira indefinida: "Os cem mil."
Era um problema tolo demais com que se preocupar, mas agora que a exaltação da verdadeira fuga havia terminado, ele se encontrou sozinho numa região da Eternidade onde nenhum pé humano tinha pisado, e não gostou disso. Ele estava envergonhado, duplamente envergonhado, desde que Noys era testemunha, pelo fato de que o ligeiro arrepio dentro dele era o ligeiro arrepio de um leve temor.
- É tão limpo - disse Noys. - Não há poeira.
- Autolimpeza - disse Harlan. com um esforço que pareceu romper suas cordas vocais, ele ergueu a voz até o nível quase normal. - Mas não há ninguém aqui, acima ou abaixo na escala do Tempo, por milhares e milhares de séculos.
Noys pareceu aceitar isso. - E tudo é assim tão bem cuidado? Passamos por depósitos de alimentos e por uma biblioteca de filmes de projeção. Você os viu?
- Vi. Oh, está completamente equipado. Estão todos completamente equipados. Todos os Setores.
- Mas por que, se ninguém vem aqui?
- É lógico - disse Harlan. Falar sobre isso afastava um pouco o medo. Dizer em voz alta o que já sabia na teoria simplificaria o assunto, fá-lo-ia descer ao nível do prosaico. Ele disse: - No princípio da história da Eternidade, um dos séculos 300 apareceu com um duplicador de massa. Sabe o que quero dizer? Estabelecendo-se um campo ressonante, a energia podia ser convertida em matéria, com as partículas subatômicas assumindo precisamente o mesmo padrão de posições, dentro das exigências de dúvida, como aquelas do modelo em uso. O resultado é uma cópia exata.
- Nós da Eternidade requisitamos o instrumento para nossos próprios propósitos. Naquele tempo, havia somente cerca de seiscentos ou setecentos Setores construídos.
Tínhamos planos de expansão, é claro. "Dez novos Setores por fisioano" era um dos lemas do tempo. O duplicador de massa tornou tudo isso desnecessário. Construímos um novo Setor completo, com alimento, suprimento de energia, suprimento de água, com todas as melhores características automáticas; montamos a máquina e duplicamos o Setor uma vez para cada século, durante toda a Eternidade. Não sei por quanto tempo continuaram o processo... milhões de séculos, provavelmente.
- Todos como este, Andrew?
- Todos exatamente como este. E à medida que a Eternidade se expande, nós apenas os retocamos, adaptando a construção para qualquer estilo que se verifique ser corrente no século. Os únicos problemas aparecem quando atingimos um século concentrado em energia. Nós... nós ainda não alcançamos este Setor.
(Não podia dizer a ela que os Eternos não conseguiam penetrar no Tempo ali, nos Séculos Obscuros. Que diferença fazia isso?)
Ele a fitou e ela pareceu preocupada. - Não há gastos envolvidos na construção dos Setores - disse ele precipitadamente. - Gasta energia, nada mais, e podendo-se contar com a nova...
- Não. Simplesmente não me lembro - interrompeu ela.
- Não se lembra de quê?
- Você disse que o duplicador foi inventado num dos séculos. Não o temos no 482. Não me lembro de ter visto coisa alguma a respeito na história.
Harlan ficou pensativo. Embora faltasse a ela apenas cinco centímetros para ter altura igual à sua, ele sentiu-se subitamente do tamanho de um gigante, por comparação.
Ela era uma menina, uma criança, e ele um semideus da Eternidade que devia ensiná-la e conduzi-la cuidadosamente à verdade.
- Noys, querida - disse ele - achemos um lugar para sentar e... e terei de explicar algo.
A concepção de uma Realidade variável, uma Realidade que não era fixa, eterna e imutável, não podia ser encarada casualmente por qualquer pessoa.
No silêncio do sono, às vezes, Harlan lembrava-se dos primeiros dias de seu Aprendizado e recordava as violentas tentativas de divorciar-se de seu século e do Tempo.
Levava seis meses para o Aprendiz mediano chegar a saber toda a verdade, descobrir que nunca poderia ir para casa novamente de uma forma bem literal. Não era a lei da Eternidade, somente, que o impedia, mas o duro fato de que o lar, como ele o conhecia, poderia muito bem não mais existir; poderia, em certo sentido, nunca ter existido.
Isso afetava os Aprendizes diferentemente. Harlan lembrava-se do rosto de Bonky Latourette ficando branco e desolado, no dia em que o Instrutor Yarrow havia tornado isso inequivocamente claro acerca da Realidade.
Nenhum dos Aprendizes comeu, naquela noite. Eles se amontoaram em busca de uma espécie de calor psíquico, todos menos Latourette, que havia desaparecido. Houve um bocado de riso falso e brincadeiras miseravelmente sem graça.
Alguém disse com uma voz trêmula e incerta: - Suponho que nunca tive mãe. Se eu voltasse ao século 95, eles diriam: "Quem é você? Não o conhecemos. Não temos nenhum registro seu. Você não existe."
Eles sorriram debilmente e sacudiram as cabeças, rapazes solitários, a quem nada sobrou senão a Eternidade.
Eles encontraram Latourette, na hora de dormir, em sono profundo e respirando levemente. Havia o leve avermelhado de um injeção-spray na concavida de seu cotovelo esquerdo e, felizmente, isso também foi notado.
Yarrow foi chamado e, por uns tempos, pareceu que um Aprendiz saíra do curso, mas ele foi trazido de volta, eventualmente. Uma semana depois, ele estava de volta ao seu lugar. Contudo, a marca daquela má noite ficou em sua personalidade durante todo o tempo em que Harlan esteve relacionado com ele, depois disso.
E agora Harlan tinha de explicar a Realidade para Noys Lambent, uma garota não muito mais velha do que aqueles Aprendizes, e explicá-la de imediato e por completo.
Ele tinha de fazê-lo. Não havia escolha quanto a isso. Ela devia saber exatamente o que se lhes apresentava e exatamente o que ela teria de fazer.
Ele lhe contou. Eles comeram alimentos enlatados, frutas congeladas e leite, em uma longa mesa de conferência designada a comportar doze, e lá ele lhe contou.
Ele o fez tão gentilmente quanto possível, mas mal achava necessidade de gentileza. Ela agarrou rapidamente cada idéia e, antes que ele estivesse na metade, deu-se conta, para seu grande espanto, de que ela não estava reagindo de maneira ruim. Ela não estava com medo. Não mostrava sentimento de perda. Ela apenas parecia zangada.
A zanga alcançou seu rosto e transformou-o em um vermelho incandescente, enquanto seus olhos escuros pareciam de alguma forma mais escuros por isso.
- Mas isto é crime - disse ela. - Quem são os Eternos para fazer isso?
- Isso é feito para o bem da humanidade - disse Harlan. É claro que ela não podia realmente entender aquilo. Ele se sentiu pesaroso pelo pensamento limitado ao Tempo de uma Tempista.
- É? Suponho que foi assim que o duplicador de massa foi eliminado.
- Ainda temos cópias. Não se preocupe com isso. Nós o preservamos.
- Vocês o preservaram. Mas e nós? Nós do 482 poderíamos tê-lo tido - ela gesticulou com pequenos movimentos de dois punhos cerrados.
- Isso não teria feito bem a vocês. Olhe, não fique excitada, querida, e ouça. com um gesto quase convulsivo (ele teria de aprender como tocá-la naturalmente, sem fazer o movimento parecer um tímido convite para uma repulsa), tomou as mãos dela nas suas e segurou-as firmemente.
Por um momento ela tentou libertá-las, e então relaxou. Ela até mesmo sorriu um pouco. - Oh, continue, bobinho, e não faça essa cara tão séria. Não estou culpando você.
- Você não deve culpar ninguém. Não há culpa necessária. Fizemos o que devia ser feito. Aquele dupli-cador de massa é um caso clássico. Eu o estudei na escola.
Quando se duplica massa, pode-se duplicar pessoas, também. Os problemas que surgem são muito complicados.
- Não está a cargo da sociedade resolver seus próprios problemas?
- Está, mas nós estudamos aquela sociedade durante todo o Tempo e ela não resolveu o problema satisfatoriamente. Lembre-se de que seu fracasso em resolvê-lo afeta não somente ela própria, mas também todas as suas sociedades descendentes. Na verdade, não há solução satisfatória para o problema do duplicator de massa.
Esta é uma daquelas coisas, como guerras atômicas e sonhadores, que simplesmente não podem ser toleradas. Os desenvolvimentos nunca são satisfatórios.
- O que o faz tão certo?
- Temos nossas máquinas de Computação, Noys; computaplex muito mais precisos do que qualquer um já desenvolvido em qualquer Realidade individual. Estes Computam as Realidades possíveis e classificam as desejabilidades de cada uma delas, através da edição de milhares e milhares de variáveis.
- Máquinas! - disse ela com desprezo.
Harlan mostrou desagrado, e então abrandou-se apressadamente. - Agora, não fique assim. Naturalmente, você se ressente por descobrir que a vida não é tão sólida como você pensava. Você e o mundo em que você viveu poderiam ter sido apenas uma sombra de probabilidade, um ano atrás, mas qual a diferença? Você tem todas as suas lembranças, sejam elas de sombras de probabilidade ou não, não tem? Você se lembra de sua infância, de seus pais, não se lembra?
- É claro.
- Então é exatamente como se você a viveu, não é? Não é? Quero dizer, se você viveu ou não?
- Eu não sei. Terei de pensar a respeito. E daí se amanhã fosse um mundo de sonho novamente, ou uma sombra, ou o que for que você chame isso?
- Então haveria uma nova Realidade e uma nova você, com novas lembranças. Seria exatamente como se nada tivesse acontecido, exceto que o total de felicidade humana teria sido aumentado novamente.
- Não acho isso de forma alguma satisfatório.
- Além disso - disse Harlan precipitadamente - nada lhe acontecerá agora. Haverá uma nova Realidade, mas você está na Eternidade. Você não será mudada.
- Mas você disse que não faz diferença - disse Noys meiancolicamente. - Por que dar-se a todo esse trabalho?
- Porque eu quero você como você é - disse Harlan, com súbito ardor. - Exatamente como você é. Não quero você mudada. Em forma alguma.
Ele chegou ao ponto de quase deixar escapar a verdade, que sem a vantagem da superstição sobre os Eternos e a vida eterna, ela nunca teria se inclinado a ele.
Olhando em volta com leve desagrado, ela disse: - Terei de ficar aqui para sempre, então? Seria... solitário.
- Não, não. Nem pense nisso - disse ele freneticamente, agarrando suas mãos com tanta força que ela estremeceu. - Descobrirei o que você será na nova Realidade do século
482, e você voltará disfarçada, por assim dizer. Tomarei conta de você. Pedirei permissão para ligação formal e cuidarei para que você continue em segurança através de futuras Mudanças. Sou um Técnico, um bom Técnico, e sei a respeito de Mudanças - ele acrescentou severamente - e sei algumas outras coisas, também - e parou aí.
- Isso tudo é permitido? - perguntou Noys. - Quero dizer, você pode trazer as pessoas para a Eternidade e impedi-las de mudar? Isso não parece correto, de forma alguma, pelas coisas que você me contou.
Por um momento Harlan sentiu-se encolhido e frio no imenso vazio dos milhares de séculos que o rodeavam por cima e por baixo. Por um momento, ele se sentiu excluído até mesmo da Eternidade, que era seu único lar e única fé, duplamente banido do Tempo e da Eternidade; e ficava a seu lado somente a mulher pela qual ele havia abandonado tudo isso.
Ele disse, e sentia isso profundamente: - Não, isto é um crime. É um crime muito grande, e estou amargamente arrependido. Mas eu o cometeria novamente, se tivesse de fazê-lo, e qualquer número de vezes, se tivesse de fazê-lo.
- Por mim, Andrew? Por mim?
Ele não ergueu seus olhos para os dela. - Não, Noys, por mim mesmo. Eu não poderia suportar o fato de perder você.
- E se formos apanhados...? - perguntou ela.
Harlan sabia a resposta para aquilo. Ele sabia a resposta desde aquele momento de introspecção, na cama, no século 482, com Noys dormindo ao seu lado. Mas, mesmo assim, não ousava pensar na bárbara verdade.
- Não tenho medo de ninguém - disse ele. - Tenho meios de me proteger. Eles não imaginam quanto sei.
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