Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 2

A história da vida de Ivan Ilitch foi das mais simples, das mais comuns e portanto das mais terríveis.

Era membro do Tribunal de Justiça e morreu aos quarenta e cinco anos. Filho de um oficial cuja carreira em Petersburgo em vários ministérios e departamentos era daquelas que conduzem as pessoas a postos dos quais, em razão de seu longo tempo de serviço e da posição alcançada, não podem ser demitidas – embora seja óbvio que não possuem o menor talento para qualquer tarefa útil –, pessoas para as quais cargos são especialmente criados, os quais, embora fictícios, pagam salários que nada têm de fictícios e dos quais eles continuam vivendo o resto da vida.

Era o caso do conselheiro particular Ilya Yefimovich Golovin, membro totalmente supérfluo de uma das tantas instituições também supérfluas.

Tinha três filhos, dos quais Ivan Ilitch era o segundo. O mais velho estava seguindo os passos do pai, só que em outro ministério, e já se aproximava daquele estágio no serviço público em que a inércia é recompensada com a estabilidade. O terceiro filho era um fracasso. Jogara fora todas as suas chances em vários postos e agora estava empregado no departamento de estradas. Seu pai, seus irmãos e principalmente as esposas destes não apenas não gostavam de encontrá-lo, como evitavam sequer lembrar de sua existência, a não ser quando forçados a isso. Sua irmã casara com o Barão Greff, um oficial de Petersburgo da mesma classe do sogro.

Ivan Ilitch era le phenix de la famille, como as pessoas costumavam dizer. Nem tão frio e formal quanto o irmão mais velho, nem tão rebelde quanto o mais jovem, era um simpático meio-termo entre os dois – um homem inteligente, educado, bem-disposto e agradável. Fora educado para o Direito, assim como o mais moço, mas este não havia terminado o curso, sendo expulso logo no início. Ivan Ilitch, ao contrário, formara-se muito bem. Como estudante, ele já era exatamente o que viria a ser para o resto da vida: um jovem muito capaz, alegre, sociável, de boa paz, embora rígido no que considerava serem suas obrigações – e ele considerava suas obrigações o que quer que os seus superiores assim considerassem. Nem quando garoto nem quando adulto foi pessoa de pedir favores, embora fosse característica sua sentir-se sempre atraído por pessoas que estivessem em posições mais altas que a sua. Adotava os modos e pontos de vista delas e logo estabelecia relações de amizade com essas pessoas. O entusiasmo de infância e juventude passou sem deixar nele grandes marcas. Deixara-se levar pela sensualidade, pela vaidade e, até o fim de sua época de estudante, por idéias liberais, mas sempre dentro de limites que sua intuição lhe dizia quais eram.

Ainda quando estudante fizera coisas que lhe pareceram vis e na ocasião o fizeram sentir-se enojado consigo, mas, mais tarde, percebendo que a mesma conduta era adotada por pessoas do mais alto nível e elas não a consideravam errada, chegou a não exatamente tê-las como certas, mas a simplesmente esquecê-las ou a não se incomodar ao lembrá-las.

Assim que conseguiu seu diploma e ingressou no décimo escalão do serviço público, e tendo recebido de seu pai um dinheiro para o novo guarda-roupa, Ivan Ilitch fez encomendas na Scharmer’s, pendurou na corrente do relógio uma medalha com a frase Respice Finem, deu adeus ao seu professor e ao patrono da Escola, fez um jantar de despedida com seus colegas no Donon’s e com seus novos pertences – um baú, roupas de cama, uniforme, objetos de toalete e um cobertor para a viagem –, todos adquiridos nas melhores lojas, partiu para uma das províncias para assumir o posto de secretário particular e emissário do governador, conseguido com a ajuda de seu pai.

Na província, Ivan Ilitch logo alcançou uma posição tão confortável quanto aquela de que gozara nos tempos de escola. Cumpria com suas obrigações, avançava em sua carreira e ao mesmo tempo levava uma vida social do mais alto padrão. De vez em quando fazia visitas oficiais a pequenas cidades, comportando-se com igual dignidade tanto com superiores quanto com inferiores e cumprindo cada uma das tarefas de que era incumbido, com escrupulosa e incorruptível integridade, da qual muito se orgulhava.

No que dizia respeito a assuntos oficiais, apesar de sua juventude e da queda por diversões frívolas, era extremamente reservado, profissional, severo até, mas em sociedade tornava-se uma pessoa divertida e espirituosa, sempre de bom humor, um cavalheiro e bon-enfant, como costumavam dizer o governador e sua esposa, que o consideravam como uma pessoa da família.

Na província, teve um caso com uma senhora que se jogou nos braços do jovem e elegante advogado. Havia também uma jovem chapeleira, e noitadas com os militares de passagem, e visitas após o jantar a uma certa rua em um bairro afastado, e havia também alguns esforços um tanto dúbios no sentido de agradar seu chefe e até mesmo a esposa deste, mas tudo era feito com tamanha classe que nada poderia ser criticado. Ficava tudo por conta do ditado francês Il faut que la jeunesse se passe[2]. Era tudo feito com mãos limpas, frases em francês e, principalmente, na alta-sociedade, portanto, com a aprovação de pessoas de classe!

Assim foi a carreira de Ivan Ilitch por cinco anos, até que houve uma mudança em sua vida oficial. Foram criadas novas instituições e fez-se necessário contratar novos homens. Ivan Ilitch tornou-se um deles. Ofereceram-lhe o cargo de juiz magistrado e ele o aceitou, apesar do fato de o posto ser em outra província e obrigá-lo a abrir mão das relações que havia feito ali e fazer outras novas. Os amigos que foram se despedir tiraram uma fotografia e deram-lhe de presente uma cigarreira prateada, e lá se foi Ivan Ilitch para uma nova vida.

Como magistrado examinador Ivan Ilitch era irrepreensível: sabia portar-se e separar com inteligência seus compromissos oficiais de sua vida particular e tão capaz de inspirar respeito quanto o tinha sido no cargo anterior. As obrigações de seu novo posto eram muito mais atraentes e interessantes do que as de sua outra função. Antes era-lhe agradável sair da Scharmer's à paisana em direção à multidão de peticionários e oficiais sem importância que aguardavam timidamente uma audiência com o governador e vê-los olhá-lo com inveja quando entrava com segurança no escritório particular do governador para com ele tomar um chá e fumar um cigarro. Mas havia pouca gente que dependia diretamente de sua boa vontade – apenas oficiais da polícia e os secretários quando iam em missões especiais –, e ele gostava de tratar essas pessoas que dependiam dele afavelmente, quase como companheiros, gostava de fazê-los sentir que ali estava ele, um homem que tinha o poder de subjugar, de quem eles dependiam, tratando-os de igual para igual. Nessa época essas pessoas não eram muitas, mas agora que ele era um magistrado sentia que todos – todos sem exceção, até aquele mais importante e auto-suficiente – estavam em suas mãos e que lhe bastava escrever certas palavras em um pedaço de papel timbrado, e esta ou aquela pessoa tão importante e auto-suficiente seria trazida a sua presença na condição de acusado ou de testemunha, e que bastava que ele decidisse não lhe deixar sentar e a pessoa seria obrigada a permanecer de pé em sua presença e responder ao seu interrogatório. Ivan Ilitch nunca abusou de sua autoridade, ao contrário, tentava suavizar o peso desta. Mas a consciência desse poder e a possibilidade de amenizar esse efeito só aumentavam o fascínio pela posição que ocupava. Quanto ao trabalho em si – isto é, os julgamentos – Ivan Ilitch logo adquiriu a arte de eliminar todas as considerações irrelevantes ao aspecto legal e reduzir até mesmo o caso mais complicado a uma forma pela qual os fundamentos pudessem ser colocados no papel, excluindo completamente sua opinião pessoal e, o que era mais importante, cumprindo todas as formalidades. Era um trabalho novo e Ivan Ilitch foi um dos primeiros homens a pôr em prática o Código de 1864.

Ao assumir o cargo de magistrado, na nova cidade, Ivan Ilitch fez novos conhecidos, novas relações, adaptou-se novamente e adotou um novo estilo. Mantinha uma digna frieza em relação às autoridades, selecionava os melhores círculos entre os homens das leis e da nobreza que viviam na cidade, com os quais sua atitude era uma mistura de uma leve crítica em relação ao governo, junto com uma moderada forma de liberalismo e consciência de cidadão. Nessa época, sem alterar a elegância nos trajes, Ivan Ilitch, em sua nova postura, parou de se barbear, deixando que a barba crescesse à vontade.

Ivan Ilitch acomodava-se outra vez a uma existência bastante agradável na nova cidade. A sociedade na qual ele agora circulava – e que tinha uma tendência a levantar críticas contra o governador – era constituída de uma simpática e afável classe-alta; seu salário era maior e ele começou a jogar whist, o que só fazia aumentar sua satisfação. Jogador bem-humorado, capaz de pensar rapidamente e calcular com finesse suas jogadas, encontrava-se quase que invariavelmente do lado do vencedor.

Depois de alguns anos na nova cidade, Ivan Ilitch conheceu aquela que viria a ser sua esposa, Praskovya Fiodorovna Mikhel, a garota mais fascinante, inteligente e espirituosa do seu círculo, e, entre tantas atividades que praticava para se distrair, Ivan Ilitch começou um leve e divertido flerte.

Quando trabalhava como secretário particular do governador, Ivan Ilitch raramente perdia um baile. Agora, na condição de magistrado, dançar era raro – como se só o fizesse para provar que, embora trabalhasse para uma instituição reformada e tivesse sido promovido para o quinto escalão, ainda assim, nessa arte, saía-se melhor do que a maioria. Assim, vez por outra, à noitinha, era visto dançando com Praskovya Fiodorovna, e foi durante uma dessas danças que a conquistou. Praskovya Fiodorovna apaixonou-se por ele. No início Ivan Ilitch não tinha intenções definidas de casamento, mas, ao percebê-la apaixonada, perguntou-se: “Afinal de contas, por que não casar?”.

Praskovya Fiodorovna vinha de boa família, não era nada feia e tinha algumas posses. Ivan Ilitch certamente aspirava a um casamento melhor, mas mesmo esse não era mau arranjo. Ele tinha um bom salário, ao qual a renda dela, esperava, viria somar-se. Ela era bem relacionada e uma jovem doce, bonita, comme il faut. Dizer que Ivan Ilitch estava casando apaixonado e porque sua noiva partilhava de suas opiniões seria tão falso quanto dizer que ele só se casava porque seu círculo social aprovava a escolha. Ivan Ilitch considerava sobretudo dois aspectos: o casamento lhe traria satisfação pessoal ao mesmo tempo em que estaria fazendo o que era considerado correto pelas classes mais altas.

E foi assim que Ivan Ilitch casou-se.

A cerimônia em si e o começo da vida conjugal, com todas as atenções, com a nova mobília, a nova louça e roupas de cama, juntando-se à gravidez de sua mulher, era tudo o que ele podia desejar, de modo que começou realmente a achar que o casamento, longe de atrapalhar seu agradável, solto, despreocupado, mas sempre respeitável modo de vida – aprovado pela sociedade e tido por ele mesmo como natural –, acrescentar-lhe-ia até um novo encanto. Mas foi nesse momento, com os primeiros meses de gravidez de sua mulher, que se apresentou um novo elemento, inesperado, desagradável, cansativo e totalmente inapropriado. Que nunca poderia ter sido previsto e do qual não havia como escapar.

Sua esposa, sem razão alguma, ou pelo menos assim lhe parecia, por puro capricho, como ele dizia, começou a perturbar a agradável e decente ordem de sua vida. Sem que houvesse qualquer tipo de justificativa, Praskovya começou a mostrar-se ciumenta, a exigir que ele dedicasse toda sua atenção a ela, punha defeitos em tudo e fazia as mais desagradáveis e constrangedoras cenas.

No início Ivan Ilitch pensava escapar desse ingrato estado das coisas tomando a mesma atitude desligada que tanto lhe servira anteriormente. Tentava ignorar os ataques de mau humor de sua esposa. Continuou a viver do seu jeito descompromissado, convidava os amigos para irem jogar cartas em sua casa, tentava ir ao clube e aceitar convites. Mas houve um dia em que sua mulher o atacou tão violentamente e daí em diante passou a atacá-lo continuamente com palavras tão vulgares a cada vez que ele recusava-se a atender suas exigências, claramente determinada a não parar até que ele se rendesse ou, em outras palavras, concordasse em ficar em casa e entediar-se tanto quanto ela, que Ivan Ilitch viu-se derrotado. Só então deu-se conta de que o casamento – pelo menos com Praskovya – estava longe de ser só fonte de prazeres e alegrias, e, ao contrário, freqüentemente infringia as leis do conforto e adequação e que, portanto, era necessário proteger-se. E Ivan Ilitch pôs-se a procurar os meios de proteção. Sua posição era o aspecto de sua vida que verdadeiramente a impressionara e ele, então, passou a usar sua posição e as obrigações dela decorrentes em sua luta por independência.

O nascimento da criança, as tentativas fracassadas de amamentá-lo e as várias doenças, reais e imaginárias, que acometeram mãe e filho, nas quais a ajuda de Ivan Ilitch era exigida, mas sobre as quais ele não entendia nada, tudo isso contribuiu para tornar mais urgente para ele a construção de um muro que o isolasse da vida familiar.

À medida que sua esposa ia ficando mais irritada e exigente, Ivan Ilitch ia transferindo o centro de gravidade de sua existência da família para o trabalho. Tornava-se cada vez mais absorvido por suas tarefas oficiais, com uma ambição que jamais tivera.

Logo, logo, com apenas um ano de casamento, Ivan Ilitch já concluíra que o matrimônio, conquanto trouxesse certas vantagens, era, na verdade, um negócio muito difícil e intrincado, no qual se uma pessoa quisesse cumprir com suas obrigações, ou seja: levar a vida decente aprovada pela sociedade, precisava criar para si uma postura muito clara.

E foi o que ele fez em relação a sua vida de casado. Esperava dela que cumprisse somente com as conveniências – uma esposa para organizar sua casa, cama feita, refeições em hora certa –, o que lhe permitia que continuasse mantendo as aparências exigidas pelo senso comum.

Quanto ao resto, ele tentava encontrar um pouco de companheirismo e se encontrava ficava muito satisfeito, mas se só encontrasse antagonismo e irritação prontamente se retirava para o seu mundo de obrigações oficiais e dele tirava grandes satisfações.

Ivan Ilitch era considerado um excelente magistrado e depois de três anos foi promovido a promotor público assistente. Suas novas funções, a importância do que fazia, a possibilidade de indiciar e condenar quem quer que fosse, a publicidade dada a seus discursos, bem como o sucesso destes, tudo isso só fazia aumentar o encanto de seu trabalho.

Outros filhos vieram. Sua mulher foi se tornando cada vez mais exigente e mal-humorada, mas a linha que Ivan Ilitch havia traçado para separá-lo de sua vida familiar tornou-o quase impermeável às reclamações de sua esposa.

Depois de sete anos servindo na mesma cidade, Ivan Ilitch foi transferido para outra província como promotor público. Mudaram-se, o dinheiro diminuiu e sua esposa não ficou satisfeita com a mudança de ambiente. Embora o salário fosse mais alto, o custo de vida era mais caro, e além disso dois dos seus filhos haviam morrido, de modo que a vida em família tornou-se ainda mais desagradável para Ivan Ilitch.

Praskovya culpava o marido por qualquer problema que acontecesse na nova casa. A maioria das conversas entre marido e mulher, especialmente aquelas que diziam respeito à educação das crianças, remetiam a disputas anteriores, de modo que a qualquer momento uma briga estava prestes a explodir. Restavam ainda aqueles raros momentos de sensualidade que aconteciam de vez em quando, mas que não duravam muito. Eram pequenas ilhas, nas quais eles aportavam vez por outra, apenas para embarcar novamente no mesmo oceano de hostilidade dissimulada que se tornava claro na distância que crescia entre os dois. Essa distância poderia tê-lo feito sofrer se ele tivesse acreditado que seria diferente, mas ele chegava a um ponto de considerar esse afastamento não só como normal, mas até como um objetivo a ser alcançado na vida doméstica. Aspirava libertar-se mais e mais de todas as coisas desagradáveis e ter para com elas uma atitude blazé, o que ele conseguiu passando cada vez menos tempo com a família e, quando forçado a estar em casa, protegendo-se através da presença de estranhos. A maior satisfação de Ivan Ilitch, no entanto, estava no fato de ter seu próprio gabinete. Todo o seu interesse concentrava-se agora no mundo de suas obrigações profissionais e estas o absorviam totalmente. A sensação de seu próprio poder, o sentimento de ser capaz de destruir quem quisesse e mesmo o status de sua posição que ele saboreava ao fazer sua entrada no Tribunal ou encontrando-se com seus funcionários, o fato de ser bem-sucedido aos olhos de superiores e subordinados e, acima de tudo, sua habilidade na resolução dos casos, da qual tinha plena consciência – tudo isso dava-lhe satisfação, como podia demonstrar nas conversas com seus colegas, nos jantares e no jogo que preenchiam seu tempo. De modo que, no geral, a vida de Ivan Ilitch continuava a correr como ele achava que tinha de ser – agradável e dentro das conveniências sociais.

E assim continuaram as coisas por mais sete anos. Sua filha mais velha já estava com dezesseis anos, outro bebê havia morrido e restava-lhe apenas um filho, um estudante que era objeto de constantes discussões. Ivan Ilitch queria que o menino entrasse para a Escola de Direito, mas Praskovya Fiodorovna mandou o garoto para o colégio. A menina fora educada em casa e tivera bons resultados; o garoto também não ia nada mal nos estudos.
© alguemsemnome,
книга «A Morte de Ivan Ilitch».
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