Capítulo 8
Era de manhã. Ele sabia que era de manhã porque Gerassim já se fora e Piotr, o outro criado, havia entrado, apagado as velas e puxado uma das cortinas. Começou a arrumar o quarto em silêncio. Se era manhã ou noite, sexta-feira ou domingo, não fazia para ele a menor diferença, era tudo a mesma coisa; dor aguda, agoniante, sem descanso, a consciência da vida esvaindo-se inexoravelmente, mas ainda não-terminada. A implacável aproximação da sempre temida e odiada morte, sua única realidade, e ao mesmo tempo toda essa mentira. O que podiam significar dias, ou noites, semanas ou horas do dia para ele?
– Vai querer o seu chá, senhor?
“Ele quer fazer tudo direitinho e isso inclui o patrão tomar o chá da manhã,” pensou Ivan Ilitch, e recusou.
– Gostaria de passar para o sofá, senhor?
“Ele tem que arrumar o quarto e eu estou atrapalhando. Eu sou sujeira e desordem,” pensou, e disse tão-somente:
– Não. Deixe-me em paz!
O rapaz continua se movimentando, ocupado com suas tarefas. Ivan Ilitch estendeu o braço. Piotr aproximou-se, pronto a obedecer.
– O que é, senhor?
– Meu relógio.
Piotr pegou o relógio que estava por perto e alcançou-o para o patrão.
– Oito e meia. Eles já levantaram?
– Não, senhor. Só Vladimir Ivanovich (o filho de Ivan Ilitch), que foi para a escola. A madame deixou ordem para ser acordada caso o senhor precise dela. Quer que eu a acorde, senhor?
– Não, não é necessário.
Pensou se deveria tentar tomar o chá.
– Sim... traga-me o chá!
Piotr foi até a porta. A idéia de ficar sozinho encheu-o de terror. Como fazer para manter o rapaz ali um pouco mais? Ah, sim, o remédio.
– Piotr, pegue o meu remédio!
Afinal de contas, o remédio deveria lhe fazer bem. Pegou a colher e engoliu uma dose. Não, não fez efeito algum. Era tudo perda de tempo, desilusão, concluiu assim que sentiu aquele gosto desaminador tão familiar. “Não, não dá mais para acreditar nisso. Mas e a dor – por que é que eu tenho de sentir essa dor? Se ao menos parasse por algum tempo!” E deu um gemido. Piotr virou-se.
– Não foi nada. Vá. Traga-me o chá!
Piotr saiu. Ao ficar sozinho Ivan Ilitch gemeu não tanto de dor, por pior que esta fosse, mas de angústia. Sempre e para sempre a mesma coisa, sempre esses intermináveis dias e noites. Se ao menos fosse tudo mais rápido. Tudo o quê? A morte. A escuridão. Não, não! Tudo menos a morte!
Quando Piotr voltou com o chá em uma bandeja, Ivan Ilitch olhou-o confuso por um tempo, tentando entender quem era aquele rapaz e o que queria. Piotr ficou desconcertado com esse olhar e seu embaraço trouxe Ivan Ilitch novamente a si.
– Ah, sim! O chá. Que bom! Ponha ali. Só ajude-me a me lavar e vestir uma camisola limpa.
E Ivan Ilitch começou a lavar-se com pausas para descansar. Lavou as mãos, depois o rosto, escovou os dentes, penteou o cabelo e olhou-se no espelho. Teve um baque com o que viu, especialmente com o pouco cabelo que grudava-se à sua pálida testa.
Enquanto trocava de camisa, pensou que ficaria ainda mais assustado ante a visão de seu corpo e evitou olhá-lo. Até que finalmente tudo terminou. Vestiu seu robe, cobriu-se com uma coberta e sentou na poltrona para beber o chá. Por um momento sentiu-se mais disposto, mas mal havia começado a beber e lá vinham de novo aquele gosto e a dor. Terminou o chá com esforço e recostou-se, esticando as pernas. Deitou-se e deixou que Piotr se fosse.
Era sempre o mesmo círculo: por um momento um breve toque de esperança e no momento seguinte um violento mar de desespero e sempre a dor, sempre sofrimento e dor novamente, incessantemente. Todo esse sofrimento solitário era terrível. Ele bem que gostaria de chamar alguém, mas sabia de antemão que, com outras pessoas no quarto com ele, seria ainda pior. “Se ao menos eu pudesse tomar mais morfina, eu perderia um pouco a consciência. Vou dizer a ele, vou dizer ao médico que ele tem de pensar em outra coisa. É impossível continuar assim, simplesmente impossível.”
Passou-se uma hora desse jeito e depois mais uma. Ouve-se a campainha da porta da frente. Seria o médico? Sim, é o médico. Saudável e com boa aparência, gordo e animado, com aquela expressão no rosto que parece dizer: “O paciente está um pouquinho nervoso, hein? Mas logo, logo vamos dar um jeito nisso”. O médico sabe que essa frase não faz sentido nesse caso, mas ele a adotou de uma vez por todas e não consegue tirá-la, como alguém que vestisse um fraque de manhã para fazer uma série de visitas.
O médico esfrega as mãos naquele seu jeito seguro e cheio de vivacidade.
– Brr... que frio! Está geando. Só deixe eu me aquecer! – diz, como se fosse apenas uma questão de esperar um ou dois segundos até que se esquentasse e então poria tudo em ordem.
– Bem, e então, como estamos?
Ivan Ilitch sentiu que o médico queria perguntar: “E então, como vai aquele probleminha?”. Mas até ele sente que seria demais e pergunta: “Como passou a noite?”.
Ivan Ilitch olha para o médico, como se dissesse: “Você nunca vai se envergonhar de mentir?”. Mas o médico não tem nenhuma vontade de entender e Ivan Ilitch diz:
– O mesmo horror de sempre. A dor não pára, não me deixa em paz. Se ao menos você pudesse me dar alguma coisa que...
– Ah... vocês doentes são todos iguais... Bem, agora acho que descongelei e nem Praskovya Fiodorovna, sempre tão exigente, acharia nada de errado com a minha temperatura. Agora já posso cumprimentar.
E aperta a mão de seu paciente e logo abandona o ar descontraído e começa com ar sério a examinar o paciente, sentindo o pulso e tirando a temperatura, auscultando-lhe e dando-lhe batidinhas.
Ivan Ilitch sabe muito bem que isso tudo não passa de fingimento, mas quando o médico, ajoelhando-se, debruça-se sobre ele, colocando o ouvido mais em cima, daqui a pouco mais embaixo e com a expressão mais sábia executa vários movimentos de ginástica sobre ele, Ivan Ilitch submete-se a tudo como costumava submeter-se aos discursos dos advogados no Tribunal, mesmo sabendo muito bem que eles estavam mentindo o tempo todo e sabendo muito bem o porquê.
O médico ainda estava ajoelhado no sofá, escutando-o, quando se ouve o farfalhar da saia de seda de Praskovya Fiodorovna e sua voz repreendendo Piotr por não tê-la avisado da chegada do médico.
Ela entra, beija o marido e imediatamente põe-se a explicar que já está de pé há muito tempo e somente por algum mal-entendido não estava lá quando o médico chegou.
Ivan Ilitch olha para ela, examina-a da cabeça aos pés e analisa, cheio de rancor, a brancura, a suavidade e a maciez de seus braços e pescoço, seus fartos cabelos e o brilho vivo de seus olhos e detesta-a do fundo de sua alma. E quando ela o toca ele é sacudido por um espasmo de ódio.
A atitude dela em relação a ele e sua doença ainda é a mesma. Assim como o médico adotara uma linha de conduta com seu paciente que não conseguia mais abandonar, também ela escolhera uma atitude em relação a ele – a de que ele não estava fazendo algo que deveria estar fazendo e era o único culpado e ela estava amorosamente chamando sua atenção – e não podia mais mudar.
– Você viu só? Ele não me ouve, não toma o remédio na hora certa. E o que é pior, inventou agora de deitar-se em uma posição que deve fazer-lhe muito mal – com as pernas para cima.
E descreveu como ele fazia Gerassim erguer suas pernas.
O médico sorriu com um ar condescendente, que queria dizer: “O que é que se pode fazer, não é? Os doentes, você sabe, pegam às vezes manias tão estranhas, mas nós temos de perdoá-los”.
Quando o exame terminou o médico olhou para o relógio, e Praskovya anunciou a Ivan Ilitch que naturalmente ele decidiria, mas ela já havia procurado um célebre especialista que o examinaria e se reuniria depois com Mihail Danilovich (o médico da família).
– Por favor, não faça objeções. Estou fazendo isso por mim – disse cinicamente, dando a entender que estava fazendo isso por ele e só dizia o contrário para não lhe dar o direito de recusar. Ele ficou em silêncio, franzindo as sobrancelhas. Sentia-se emaranhado em uma rede de tamanha falsidade que ficava difícil livrar-se do que quer que fosse.
Tudo que ela fazia para ele era inteiramente para si mesma, e ela costumava dizer a ele que estava fazendo por ela mesma o que de fato ela estava fazendo por ela mesma, como se isso fosse tão inacreditável que só pudesse significar o contrário.
E, assim, às onze e meia chegou o famoso especialista. Mais uma vez houve exames e conversas sérias, na sua presença e no quarto ao lado, sobre o rim e o apêndice. E perguntas e respostas com um ar de tamanha importância que, mais uma vez, ao invés da verdadeira questão sobre vida e morte, a única que lhe interessava, o assunto se restringia ao rim e o apêndice que não estavam se comportando como deveriam e que seriam agora atacados pelo Dr. Mihail Danilovich, mais o especialista, e forçados a entrarem nos eixos.
O célebre especialista despediu-se com expressão séria e solidária, mas pouco animadora. À tímida pergunta feita por Ivan Ilitch com os olhos cheios de medo e esperança, sobre se havia alguma chance de recuperação, respondeu que não podia garantir, mas que certamente havia uma possibilidade. O olhar de esperança com que Ivan Ilitch observava o médico ir embora era tão patético que ao vê-lo, quando passava pelo escritório para fazer o pagamento, Praskovya começou a chorar.
A chama de esperança acesa pelo médico não durou muito. A mesma sala, os mesmos quadros, as mesmas cortinas, o papel de parede, os vidros de remédio estavam todos ali e ali estava também o mesmo dolorido e sofrido corpo. E Ivan Ilitch pôs-se a gemer de dor. Deram-lhe uma injeção subcutânea que o deixou inconsciente.
Já estava escuro quando voltou a si. Trouxeram-lhe seu jantar e ele forçou-se a engolir um pouco de caldo de carne e outra vez estava tudo igual com mais uma noite se aproximando.
Depois do jantar, às sete horas, Praskovya entrou no quarto, arrumada para sair, com seus seios exuberantes bem erguidos, o rosto coberto de pó-de-arroz. Ela lhe havia lembrado de manhã que iriam ao teatro. Sarah Bernhardt estava na cidade e eles tinham um camarote que ele mesmo fizera questão de reservar. Ele havia esquecido completamente e aquele traje dela era um insulto. Mas disfarçou a irritação ao lembrar que fora ele próprio, realmente, quem insistira em fazer a reserva porque seria um grande prazer estético e contribuiria para a educação das crianças.
Praskovya Fiodorovna entrou com um ar muito satisfeito, mas levemente culpado. Sentou-se, perguntou como ele estava, só por perguntar, como ele bem notou, e foi dizendo o que seu papel lhe exigia que dissesse: que por ela nada a faria sair, mas o camarote já havia sido reservado e Ellen e a filha iam, assim como Petrischev (o magistrado pretendente da filha), e que nem se podia cogitar deixá-los ir sozinhos. Mas, sem dúvida, ela teria preferido mil vezes sentar ali com ele um pouco, e que ele, por favor, não deixasse de seguir as ordens médicas.
– Ah, sim, Fiodr Petrovich (o pretendente) gostaria de entrar um pouco. Você se importa? E Liza também!
– Pode chamá-los!
Sua filha entrou com um vestido de noite, sua carne jovem e branca ali à mostra, enquanto que a dele o fazia sofrer tanto. Ela, ao contrário, exibia a sua: era forte, saudável, visivelmente apaixonada e naturalmente impaciente com doença, sofrimento e morte porque vinham atrapalhar sua felicidade.
Fiodr Petrovich entrou também em traje de noite, os cabelos encaracolados à la Capoul, seu pescoço longo e forte envolto em um colarinho branco, o peito da camisa também branco e calças pretas, justas, bem esticadas sobre as fortes coxas. Uma luva branca cobria-lhe delicadamente uma das mãos e na outra segurava um chapéu de ópera.
Atrás dele vinha, quieto, sem se fazer notar, o garoto, em seu novo traje, pobrezinho, usando luvas e com aquele horrível círculo azul embaixo dos olhos que Ivan Ilitch sabia muito bem o que significava.
Seu filho sempre lhe parecera um tanto patético e agora lhe era terrível ver aquele olhar de pena no rosto assustado do menino. Com exceção de Gerassim, Ivan Ilitch tinha a impressão de que Vassya era o único que o entendia e compadecia-se dele.
Sentaram-se todos e mais uma vez perguntaram como ele estava. Seguiu-se um silêncio. Liza perguntou para a mãe se ela estava com o binóculo e houve uma discussão entre mãe e filha sobre quem tinha ficado com ele e onde o haviam colocado, o que causou um certo mal-estar.
Fiodr Petrovich perguntou a Ivan Ilitch se ele alguma vez havia assistido Sarah Bernhardt. Ivan Ilitch demorou um pouco para entender a pergunta mas, depois de algum tempo, disse:
– Não. Você já?
– Sim, em Adrienne Lecouvreur.
Praskovya Fiodorovna mencionou alguns papéis nos quais Sarah Bernhard estivera particularmente bem. A filha discordou. Começou então uma discussão acerca da graça e naturalidade de sua atuação – o tipo de assunto que aparece seguidamente e é sempre a mesma coisa, não leva a parte alguma.
No meio da conversa, Fiodr Petrovich olhou para Ivan Ilitch e emudeceu. Os outros o olharam e silenciaram. Ivan Ilitch fixava seus olhos brilhantes direto neles, obviamente furioso com todos. Alguém tinha de consertar a situação, mas não havia meio de fazê-lo. O silêncio tinha de ser quebrado, mas ninguém se atrevia a falar, com pânico de que a farsa convencional fosse subitamente desmanchada e a verdade viesse à tona para todos. Liza foi a primeira a ganhar coragem e quebrar o silêncio, mas, ao tentar encobrir o que estavam sentindo, ela os traiu.
– Bem, se nós vamos mesmo, já está na hora – disse, olhando para o relógio que ganhara de seu pai e, com um sorriso quase imperceptível para o jovem, aludindo a algum segredo entre eles, levantou-se, sacudindo as saias.
Todos levantaram, deram boa-noite e saíram.
Quando ficou sozinho, Ivan Ilitch notou que se sentia melhor: a falsidade havia ido embora com eles. Mas a dor continuava. Aquela dor contínua, aquele terror contínuo, fazia com que nada parecesse mais fácil ou mais difícil. Tudo sempre ficava pior.
Outra vez, minuto após minuto, hora após hora, arrastando-se sempre iguais e sempre intermináveis. E o inevitável fim de tudo tornando-se cada vez mais terrível.
– Sim, mande Gerassim aqui – respondeu a Piotr.
– Vai querer o seu chá, senhor?
“Ele quer fazer tudo direitinho e isso inclui o patrão tomar o chá da manhã,” pensou Ivan Ilitch, e recusou.
– Gostaria de passar para o sofá, senhor?
“Ele tem que arrumar o quarto e eu estou atrapalhando. Eu sou sujeira e desordem,” pensou, e disse tão-somente:
– Não. Deixe-me em paz!
O rapaz continua se movimentando, ocupado com suas tarefas. Ivan Ilitch estendeu o braço. Piotr aproximou-se, pronto a obedecer.
– O que é, senhor?
– Meu relógio.
Piotr pegou o relógio que estava por perto e alcançou-o para o patrão.
– Oito e meia. Eles já levantaram?
– Não, senhor. Só Vladimir Ivanovich (o filho de Ivan Ilitch), que foi para a escola. A madame deixou ordem para ser acordada caso o senhor precise dela. Quer que eu a acorde, senhor?
– Não, não é necessário.
Pensou se deveria tentar tomar o chá.
– Sim... traga-me o chá!
Piotr foi até a porta. A idéia de ficar sozinho encheu-o de terror. Como fazer para manter o rapaz ali um pouco mais? Ah, sim, o remédio.
– Piotr, pegue o meu remédio!
Afinal de contas, o remédio deveria lhe fazer bem. Pegou a colher e engoliu uma dose. Não, não fez efeito algum. Era tudo perda de tempo, desilusão, concluiu assim que sentiu aquele gosto desaminador tão familiar. “Não, não dá mais para acreditar nisso. Mas e a dor – por que é que eu tenho de sentir essa dor? Se ao menos parasse por algum tempo!” E deu um gemido. Piotr virou-se.
– Não foi nada. Vá. Traga-me o chá!
Piotr saiu. Ao ficar sozinho Ivan Ilitch gemeu não tanto de dor, por pior que esta fosse, mas de angústia. Sempre e para sempre a mesma coisa, sempre esses intermináveis dias e noites. Se ao menos fosse tudo mais rápido. Tudo o quê? A morte. A escuridão. Não, não! Tudo menos a morte!
Quando Piotr voltou com o chá em uma bandeja, Ivan Ilitch olhou-o confuso por um tempo, tentando entender quem era aquele rapaz e o que queria. Piotr ficou desconcertado com esse olhar e seu embaraço trouxe Ivan Ilitch novamente a si.
– Ah, sim! O chá. Que bom! Ponha ali. Só ajude-me a me lavar e vestir uma camisola limpa.
E Ivan Ilitch começou a lavar-se com pausas para descansar. Lavou as mãos, depois o rosto, escovou os dentes, penteou o cabelo e olhou-se no espelho. Teve um baque com o que viu, especialmente com o pouco cabelo que grudava-se à sua pálida testa.
Enquanto trocava de camisa, pensou que ficaria ainda mais assustado ante a visão de seu corpo e evitou olhá-lo. Até que finalmente tudo terminou. Vestiu seu robe, cobriu-se com uma coberta e sentou na poltrona para beber o chá. Por um momento sentiu-se mais disposto, mas mal havia começado a beber e lá vinham de novo aquele gosto e a dor. Terminou o chá com esforço e recostou-se, esticando as pernas. Deitou-se e deixou que Piotr se fosse.
Era sempre o mesmo círculo: por um momento um breve toque de esperança e no momento seguinte um violento mar de desespero e sempre a dor, sempre sofrimento e dor novamente, incessantemente. Todo esse sofrimento solitário era terrível. Ele bem que gostaria de chamar alguém, mas sabia de antemão que, com outras pessoas no quarto com ele, seria ainda pior. “Se ao menos eu pudesse tomar mais morfina, eu perderia um pouco a consciência. Vou dizer a ele, vou dizer ao médico que ele tem de pensar em outra coisa. É impossível continuar assim, simplesmente impossível.”
Passou-se uma hora desse jeito e depois mais uma. Ouve-se a campainha da porta da frente. Seria o médico? Sim, é o médico. Saudável e com boa aparência, gordo e animado, com aquela expressão no rosto que parece dizer: “O paciente está um pouquinho nervoso, hein? Mas logo, logo vamos dar um jeito nisso”. O médico sabe que essa frase não faz sentido nesse caso, mas ele a adotou de uma vez por todas e não consegue tirá-la, como alguém que vestisse um fraque de manhã para fazer uma série de visitas.
O médico esfrega as mãos naquele seu jeito seguro e cheio de vivacidade.
– Brr... que frio! Está geando. Só deixe eu me aquecer! – diz, como se fosse apenas uma questão de esperar um ou dois segundos até que se esquentasse e então poria tudo em ordem.
– Bem, e então, como estamos?
Ivan Ilitch sentiu que o médico queria perguntar: “E então, como vai aquele probleminha?”. Mas até ele sente que seria demais e pergunta: “Como passou a noite?”.
Ivan Ilitch olha para o médico, como se dissesse: “Você nunca vai se envergonhar de mentir?”. Mas o médico não tem nenhuma vontade de entender e Ivan Ilitch diz:
– O mesmo horror de sempre. A dor não pára, não me deixa em paz. Se ao menos você pudesse me dar alguma coisa que...
– Ah... vocês doentes são todos iguais... Bem, agora acho que descongelei e nem Praskovya Fiodorovna, sempre tão exigente, acharia nada de errado com a minha temperatura. Agora já posso cumprimentar.
E aperta a mão de seu paciente e logo abandona o ar descontraído e começa com ar sério a examinar o paciente, sentindo o pulso e tirando a temperatura, auscultando-lhe e dando-lhe batidinhas.
Ivan Ilitch sabe muito bem que isso tudo não passa de fingimento, mas quando o médico, ajoelhando-se, debruça-se sobre ele, colocando o ouvido mais em cima, daqui a pouco mais embaixo e com a expressão mais sábia executa vários movimentos de ginástica sobre ele, Ivan Ilitch submete-se a tudo como costumava submeter-se aos discursos dos advogados no Tribunal, mesmo sabendo muito bem que eles estavam mentindo o tempo todo e sabendo muito bem o porquê.
O médico ainda estava ajoelhado no sofá, escutando-o, quando se ouve o farfalhar da saia de seda de Praskovya Fiodorovna e sua voz repreendendo Piotr por não tê-la avisado da chegada do médico.
Ela entra, beija o marido e imediatamente põe-se a explicar que já está de pé há muito tempo e somente por algum mal-entendido não estava lá quando o médico chegou.
Ivan Ilitch olha para ela, examina-a da cabeça aos pés e analisa, cheio de rancor, a brancura, a suavidade e a maciez de seus braços e pescoço, seus fartos cabelos e o brilho vivo de seus olhos e detesta-a do fundo de sua alma. E quando ela o toca ele é sacudido por um espasmo de ódio.
A atitude dela em relação a ele e sua doença ainda é a mesma. Assim como o médico adotara uma linha de conduta com seu paciente que não conseguia mais abandonar, também ela escolhera uma atitude em relação a ele – a de que ele não estava fazendo algo que deveria estar fazendo e era o único culpado e ela estava amorosamente chamando sua atenção – e não podia mais mudar.
– Você viu só? Ele não me ouve, não toma o remédio na hora certa. E o que é pior, inventou agora de deitar-se em uma posição que deve fazer-lhe muito mal – com as pernas para cima.
E descreveu como ele fazia Gerassim erguer suas pernas.
O médico sorriu com um ar condescendente, que queria dizer: “O que é que se pode fazer, não é? Os doentes, você sabe, pegam às vezes manias tão estranhas, mas nós temos de perdoá-los”.
Quando o exame terminou o médico olhou para o relógio, e Praskovya anunciou a Ivan Ilitch que naturalmente ele decidiria, mas ela já havia procurado um célebre especialista que o examinaria e se reuniria depois com Mihail Danilovich (o médico da família).
– Por favor, não faça objeções. Estou fazendo isso por mim – disse cinicamente, dando a entender que estava fazendo isso por ele e só dizia o contrário para não lhe dar o direito de recusar. Ele ficou em silêncio, franzindo as sobrancelhas. Sentia-se emaranhado em uma rede de tamanha falsidade que ficava difícil livrar-se do que quer que fosse.
Tudo que ela fazia para ele era inteiramente para si mesma, e ela costumava dizer a ele que estava fazendo por ela mesma o que de fato ela estava fazendo por ela mesma, como se isso fosse tão inacreditável que só pudesse significar o contrário.
E, assim, às onze e meia chegou o famoso especialista. Mais uma vez houve exames e conversas sérias, na sua presença e no quarto ao lado, sobre o rim e o apêndice. E perguntas e respostas com um ar de tamanha importância que, mais uma vez, ao invés da verdadeira questão sobre vida e morte, a única que lhe interessava, o assunto se restringia ao rim e o apêndice que não estavam se comportando como deveriam e que seriam agora atacados pelo Dr. Mihail Danilovich, mais o especialista, e forçados a entrarem nos eixos.
O célebre especialista despediu-se com expressão séria e solidária, mas pouco animadora. À tímida pergunta feita por Ivan Ilitch com os olhos cheios de medo e esperança, sobre se havia alguma chance de recuperação, respondeu que não podia garantir, mas que certamente havia uma possibilidade. O olhar de esperança com que Ivan Ilitch observava o médico ir embora era tão patético que ao vê-lo, quando passava pelo escritório para fazer o pagamento, Praskovya começou a chorar.
A chama de esperança acesa pelo médico não durou muito. A mesma sala, os mesmos quadros, as mesmas cortinas, o papel de parede, os vidros de remédio estavam todos ali e ali estava também o mesmo dolorido e sofrido corpo. E Ivan Ilitch pôs-se a gemer de dor. Deram-lhe uma injeção subcutânea que o deixou inconsciente.
Já estava escuro quando voltou a si. Trouxeram-lhe seu jantar e ele forçou-se a engolir um pouco de caldo de carne e outra vez estava tudo igual com mais uma noite se aproximando.
Depois do jantar, às sete horas, Praskovya entrou no quarto, arrumada para sair, com seus seios exuberantes bem erguidos, o rosto coberto de pó-de-arroz. Ela lhe havia lembrado de manhã que iriam ao teatro. Sarah Bernhardt estava na cidade e eles tinham um camarote que ele mesmo fizera questão de reservar. Ele havia esquecido completamente e aquele traje dela era um insulto. Mas disfarçou a irritação ao lembrar que fora ele próprio, realmente, quem insistira em fazer a reserva porque seria um grande prazer estético e contribuiria para a educação das crianças.
Praskovya Fiodorovna entrou com um ar muito satisfeito, mas levemente culpado. Sentou-se, perguntou como ele estava, só por perguntar, como ele bem notou, e foi dizendo o que seu papel lhe exigia que dissesse: que por ela nada a faria sair, mas o camarote já havia sido reservado e Ellen e a filha iam, assim como Petrischev (o magistrado pretendente da filha), e que nem se podia cogitar deixá-los ir sozinhos. Mas, sem dúvida, ela teria preferido mil vezes sentar ali com ele um pouco, e que ele, por favor, não deixasse de seguir as ordens médicas.
– Ah, sim, Fiodr Petrovich (o pretendente) gostaria de entrar um pouco. Você se importa? E Liza também!
– Pode chamá-los!
Sua filha entrou com um vestido de noite, sua carne jovem e branca ali à mostra, enquanto que a dele o fazia sofrer tanto. Ela, ao contrário, exibia a sua: era forte, saudável, visivelmente apaixonada e naturalmente impaciente com doença, sofrimento e morte porque vinham atrapalhar sua felicidade.
Fiodr Petrovich entrou também em traje de noite, os cabelos encaracolados à la Capoul, seu pescoço longo e forte envolto em um colarinho branco, o peito da camisa também branco e calças pretas, justas, bem esticadas sobre as fortes coxas. Uma luva branca cobria-lhe delicadamente uma das mãos e na outra segurava um chapéu de ópera.
Atrás dele vinha, quieto, sem se fazer notar, o garoto, em seu novo traje, pobrezinho, usando luvas e com aquele horrível círculo azul embaixo dos olhos que Ivan Ilitch sabia muito bem o que significava.
Seu filho sempre lhe parecera um tanto patético e agora lhe era terrível ver aquele olhar de pena no rosto assustado do menino. Com exceção de Gerassim, Ivan Ilitch tinha a impressão de que Vassya era o único que o entendia e compadecia-se dele.
Sentaram-se todos e mais uma vez perguntaram como ele estava. Seguiu-se um silêncio. Liza perguntou para a mãe se ela estava com o binóculo e houve uma discussão entre mãe e filha sobre quem tinha ficado com ele e onde o haviam colocado, o que causou um certo mal-estar.
Fiodr Petrovich perguntou a Ivan Ilitch se ele alguma vez havia assistido Sarah Bernhardt. Ivan Ilitch demorou um pouco para entender a pergunta mas, depois de algum tempo, disse:
– Não. Você já?
– Sim, em Adrienne Lecouvreur.
Praskovya Fiodorovna mencionou alguns papéis nos quais Sarah Bernhard estivera particularmente bem. A filha discordou. Começou então uma discussão acerca da graça e naturalidade de sua atuação – o tipo de assunto que aparece seguidamente e é sempre a mesma coisa, não leva a parte alguma.
No meio da conversa, Fiodr Petrovich olhou para Ivan Ilitch e emudeceu. Os outros o olharam e silenciaram. Ivan Ilitch fixava seus olhos brilhantes direto neles, obviamente furioso com todos. Alguém tinha de consertar a situação, mas não havia meio de fazê-lo. O silêncio tinha de ser quebrado, mas ninguém se atrevia a falar, com pânico de que a farsa convencional fosse subitamente desmanchada e a verdade viesse à tona para todos. Liza foi a primeira a ganhar coragem e quebrar o silêncio, mas, ao tentar encobrir o que estavam sentindo, ela os traiu.
– Bem, se nós vamos mesmo, já está na hora – disse, olhando para o relógio que ganhara de seu pai e, com um sorriso quase imperceptível para o jovem, aludindo a algum segredo entre eles, levantou-se, sacudindo as saias.
Todos levantaram, deram boa-noite e saíram.
Quando ficou sozinho, Ivan Ilitch notou que se sentia melhor: a falsidade havia ido embora com eles. Mas a dor continuava. Aquela dor contínua, aquele terror contínuo, fazia com que nada parecesse mais fácil ou mais difícil. Tudo sempre ficava pior.
Outra vez, minuto após minuto, hora após hora, arrastando-se sempre iguais e sempre intermináveis. E o inevitável fim de tudo tornando-se cada vez mais terrível.
– Sim, mande Gerassim aqui – respondeu a Piotr.
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