Capítulo 4
A família toda gozava de boa saúde. Ivan Ilitch às vezes queixava-se de um gosto estranho na boca e uma sensação desconfortável no lado esquerdo do estômago, mas ninguém chamaria isso de doença.
Mas essa sensação desconfortável foi piorando e, embora não sendo exatamente dolorosa, evoluiu para um tipo de pressão no lado, acompanhado de desânimo e irritabilidade. A irritação foi crescendo cada vez mais, até começar a estragar a vida agradável, calma e decente que os Golovin haviam conseguido. O casal brigava cada vez com mais freqüência e há muito que toda a calma e o prazer da vida haviam caído por terra e era com dificuldade que conseguiam manter as aparências como antes. Havia repetidas discussões, até que, no mar da discórdia restaram muito poucas ilhas nas quais marido e mulher conseguiam se encontrar sem que houvesse uma explosão. E Praskovya dizia, agora não sem motivo, que seu marido tinha um temperamento difícil. Com seu característico exagero, sustentava que ele sempre havia sido assim e fora preciso muita paciência de sua parte para suportar a situação durante esses vinte anos. É bem verdade que agora era ele quem começava as discussões. Seus ataques temperamentais sempre explodiam quando estavam sentando para o jantar, freqüentemente um pouco antes da sopa. Bastava ele notar que um prato estava lascado, ou o gosto da comida não estava como deveria, ou era o filho que colocava o cotovelo em cima da mesa, ou o cabelo da filha que não estava bem penteado. E o que quer que fosse, a culpa era de Praskovya. No início ela respondia no mesmo tom e dizia-lhe coisas desagradáveis, mas depois que uma ou duas vezes, bem no início do jantar, ele entrou em tal delírio de repente, ela achou que se devia a alguma reação física que acontecia ao comer e resolveu conter-se e não reagir. Apressou-se em terminar a refeição. Praskovya orgulhou-se muito por esse exercício de autocontrole. Tendo chegado à conclusão de que o marido possuía um temperamento assustador e tornara sua vida miserável, começou a ter pena de si mesma e, quanto mais pena tinha de si mesma, mais detestava o marido. Começou a desejar que morresse, ainda que não o quisesse morto porque com ele iria-se também o salário dele. E isso provocava-lhe ainda maior irritação contra ele. Julgava-se terrivelmente infeliz justamente porque nem mesmo sua morte poderia trazer-lhe alívio e, embora disfarçasse sua irritação, a amargura sufocada só fazia aumentar sua raiva.
Depois de uma cena em que Ivan Ilitch fora especialmente injusto e depois dissera, à guisa de explicação, que sem dúvida estava irritado mas que isso se devia ao fato de não estar se sentindo bem, ela respondeu que se ele estava doente devia ser tratado e insistiu em que consultasse um médico famoso.
E ele foi. Seguiu-se tudo dentro do esperado, como sempre acontece. Houve o habitual período na sala de espera, a atitude importante assumida pelo médico – ele conhecia bem aquele ar de dignidade profissional; ele próprio o adotava no Tribunal –, os exames e as perguntas que exigiam respostas que levavam a conclusões óbvias e obviamente desnecessárias e o olhar grave, que queria dizer: “Deixe tudo conosco e nós resolveremos as coisas, nós sabemos tudo do assunto e podemos resolvê-lo para você, como faríamos com qualquer outra pessoa”. O procedimento todo era igual ao dos Tribunais. Os ares que ele adotava no Tribunal em benefício do prisioneiro, o médico adotava agora em relação a ele.
O médico disse-lhe que este e aquele sintoma indicavam que isto ou aquilo iam mal com o paciente por dentro, mas se esse diagnóstico não fosse confirmado pelos exames clínicos disto ou daquilo, então chegaremos a esta ou aquela conclusão. Se chegarmos a esta ou aquela conclusão, então... e assim por diante. Para Ivan Ilitch só importava saber uma coisa: o seu caso era sério ou não era? Mas o médico ignorou essa pergunta tão fora de propósito. Do ponto de vista do médico tratava-se de um detalhe que não merecia ser levado em consideração: o problema realmente era avaliar todas as probabilidades e decidir entre um rim flutuante ou apendicite. Não era uma questão de Ivan Ilitch viver ou morrer, mas de decidir se era rim ou apêndice. E nesse caso o médico inclinava-se mais em favor do apêndice, com a ressalva de que a análise da urina poderia indicar uma pista totalmente nova e então toda a questão teria de ser reavaliada. Tudo isso era, em menor proporção, exatamente o que Ivan Ilitch fizera de modo tão brilhante mil vezes ao lidar com as pessoas no Tribunal. O médico concluiu tudo brilhantemente, olhando triunfante por sobre os óculos para o acusado. A partir da fala do médico, Ivan Ilitch concluiu que as coisas não estavam bem, mas que para o médico e provavelmente para todas as outras pessoas isso não faria a menor diferença, enquanto que para ele era simplesmente terrível. E essa conclusão foi dolorosa, despertando-lhe um grande sentimento de autopiedade, e de amargura em relação ao médico que não se importava nem um pouco com uma questão tão importante.
Mas não disse nada, levantou, colocou o dinheiro da consulta em cima da mesa e falou com um suspiro:
– Nós, os doentes, sem dúvida fazemos muitas vezes perguntas inadequadas. Mas, diga-me, de modo geral, assim por cima, esses sintomas lhe parecem graves ou não?
O médico olhou-o severamente por cima do monóculo, como se dissesse: “Pedimos ao réu que se atenha a responder o que lhe foi perguntado ou serei obrigado a fazer com que o retirem da sala”.
– Eu já lhe disse tudo que julgava necessário dizer – respondeu o médico –, os exames devem dar mais detalhes. – E indicou-lhe a porta.
Ivan Ilitch saiu devagar, sentou-se desanimado no trenó e foi para casa. Durante todo o percurso repassava em sua mente as palavras do médico, tentando traduzir todas aquelas frases complicadas, obscuras, científicas, em linguagem normal, tentando encontrar nelas a resposta para a pergunta: “Estarei mal, realmente muito mal ou, ao final das contas, isso não é nada?”. E tinha a impressão de que a conclusão de tudo o que o médico dissera era de que sim, ele estava realmente muito mal. Tudo na rua parecia-lhe deprimente, os trenós pareciam sem vida, assim como as casas, as pessoas que passavam na rua, as lojas. E essa dor, essas fisgadas de dor que ele não conseguia identificar e que não cessavam um segundo sequer pareciam, se associadas às enigmáticas palavras do médico, ter adquirido um significado novo e muito mais sério com essa nova consciência de sua desgraça. Ivan Ilitch agora não conseguia mais desviar dela sua atenção.
Quando chegou em casa, começou a falar sobre isso com sua esposa. Ela o escutava mas, no meio do seu relato, sua filha entrou de chapéu, pronta para saírem. Um tanto relutante, ela meio que sentou para ouvir a enfadonha narrativa, mas não conseguiu controlar sua impaciência por muito tempo, e Praskovya Fiodorovna também não o escutou até o fim.
– Bem, fico muito contente! – disse ela. – Você deve se cuidar daqui por diante e tomar os remédios regularmente. Me dê a receita, vou mandar Gerassim até o farmacêutico.
Ele mal havia conseguido tomar fôlego enquanto ela estava na sala e deu um profundo suspiro quando ela se foi.
“Bem”, falou consigo mesmo, “talvez não seja nada, afinal.”
Começou a tomar o remédio e seguir as instruções do médico, as quais foram alteradas depois do exame de urina. Mas foi justamente nesse fato que se originou uma conclusão ligada à análise e o que deveria ter sido feito a partir daí. O médico naturalmente não podia ser responsabilizado, mas o fato era que as coisas não se passaram como o médico lhe disse que se passariam. Ou havia esquecido algo ou feito alguma bobagem ou estava-lhe escondendo alguma coisa.
Apesar de tudo, Ivan Ilitch ainda continuava a seguir as ordens médicas e no início encontrava algum conforto nisso.
Desde a primeira consulta ao médico a principal ocupação de Ivan Ilitch passara a ser seguir atentamente suas ordens no que se referia à higiene e aos medicamentos e observar atentamente os sintomas de sua doença, bem como o funcionamento geral de seu corpo. Seu principal interesse passou a ser justamente a doença e a saúde das outras pessoas. Quando alguém mencionava doenças, mortes ou curas em sua presença, especialmente se os sintomas se parecessem com os seus, ouvia a tudo atentamente, tentando disfarçar sua agitação, fazer perguntas e aplicar o que ouvira ao seu próprio caso.
A dor não diminuía, mas Ivan Ilitch fazia grandes esforços para acreditar que estava melhor. E até conseguia convencer-se disso, desde que nada acontecesse que o deixasse perturbado. Mas bastava que houvesse o menor aborrecimento com a esposa, ou sofresse qualquer contrariedade no Tribunal ou lhe caíssem cartas ruins no jogo e ele tornava-se de uma hora para outra extremamente sensível à sua doença. Em outra época ele teria suportado esses contratempos, esperando corrigir em seguida o que estava errado, superá-los e sair-se bem de tudo. Mas agora qualquer revés aborrecia-o e fazia-o afundar no desespero. Dizia-se coisas como: “Foi só eu me sentir um pouco melhor, o remédio começar a fazer efeito, que me acontece isso... é muito azar mesmo...”. E explodia contra sua má sorte ou contra as pessoas que estavam causando-lhe tal decepção e matando-o aos poucos. E ele tinha consciência de como esses ataques passionais o estavam matando, mas não conseguia conter-se. Qualquer um pensaria ser óbvio para ele que exasperar-se assim com as circunstâncias e com as pessoas só agravaria sua doença e que portanto ele não deveria dar atenção a esses incidentes desagradáveis. Mas ele concluíra exatamente o contrário: convencera-se de que precisava de paz e estava atento às mínimas coisas que pudessem perturbar essa paz, tomando-se de raiva ao menor movimento nessa direção. Seu estado agravava-se pelo fato de ler livros de medicina e consultar vários médicos. O progresso de sua doença era tão mínimo que, ao comparar um dia com o outro, seria capaz de enganar-se, tão sutil era a diferença. Mas quando consultava os médicos tinha a impressão de estar piorando rapidamente, assustadoramente, a cada dia. Ainda assim, ele continuava consultando médicos.
Naquele mês foi consultar outra celebridade. Essa celebridade disse exatamente o mesmo que a primeira, sendo que ele elaborou as perguntas de modo diferente e a entrevista com essa celebridade apenas fez redobrar nele as dúvidas e os temores. Depois, um amigo de um amigo seu, um médico muito bom, deu outro diagnóstico para sua doença e, embora previsse que ele acabaria por se curar, suas perguntas e hipóteses confundiram-no ainda mais e aumentaram seu ceticismo. Um homeopata fez ainda um diagnóstico diferente e deu-lhe um remédio que ele tomou escondido por uma semana, mas, no final, não tendo sentido alívio algum e tendo perdido a confiança tanto nos remédios anteriores quanto nesse novo tratamento, acabou ficando ainda mais desanimado do que antes. Um dia, uma conhecida sua mencionou uma cura através de imagens milagrosas. Ivan Ilitch flagrou-se ouvindo atentamente e começando a acreditar na história como algo concreto. Este incidente assustou-o. “A minha cabeça terá degenerado a esse ponto?”, perguntava-se. “Todas essas bobagens, esse lixo...! Não devo me deixar impressionar, mas sim escolher um médico e seguir seriamente o tratamento que ele me der. É isso que eu vou fazer. Está decidido. Não vou mais pensar nisso, só seguir o tratamento até o verão e então veremos. De agora em diante, nada de vacilações!” Isso tudo era fácil de dizer, mas impossível de colocar em prática. A dor no lado preocupava-o e parecia ficar mais forte e mais freqüente, enquanto que o gosto em sua boca era cada vez mais estranho. Tinha a sensação de estar sempre com mau hálito e seu apetite e sua força diminuíam gradativamente. Não podia mais se iludir, alguma coisa terrível, nova e importante, mais importante do que tudo o que já acontecera em sua vida, estava se passando dentro dele, alguma coisa da qual só ele estava a par. As pessoas em volta dele não entendiam, recusavam-se a entender e acreditavam que tudo no mundo continuava igual. Essa idéia atormentava-o mais do que qualquer outra coisa. Via que todos os que o rodeavam, especialmente sua esposa e filha, tão absorvidas por compromissos sociais, não só não tinham um pingo de compreensão, como ainda se irritavam com ele por andar tão deprimido e exigente, como se a culpa fosse sua. Por mais que tentassem disfarçar ele via que estava atrapalhando-lhes o caminho. Sua esposa havia adotado uma atitude em relação a sua doença, fixara-se nela e não se importava com o que ele dissesse ou fizesse.
– Você sabe – ela costumava dizer para os amigos –, Ivan Ilitch não consegue fazer como as outras pessoas e seguir o tratamento prescrito pelo médico. Um dia ele toma os remédios, mantém a dieta e vai para a cama na hora certa, mas no outro, se não sou eu a me preocupar, ele esquece dos remédios, come caviar – que o médico proibiu – e senta-se a jogar cartas até a uma da manhã.
– Ah, o que é isto? Quando foi que eu fiz isso? – ele perguntava irritado. – Só uma vez na casa de Piotr Ivanovich.
– Ah, é? E ontem na casa de Shebek?
– Qual é a diferença? Eu não teria dormido mesmo por causa da dor...
– Que seja, mas desse jeito você não fica bom e nos faz infelizes.
A atitude de Proskovya Fiodorovna em relação à doença de Ivan Ilitch, que ela expressava abertamente, insinuava que toda a doença era culpa dele próprio e só mais um dos tantos aborrecimentos que ele costumava causar à esposa. Ivan Ilitch percebia que ela deixava escapar isso tudo sem se dar conta, mas nem por isso doía-lhe menos.
No Tribunal também Ivan Ilitch percebeu, ou imaginou perceber, o mesmo tipo de atitude. Certa ocasião pareceu-lhe que as pessoas o estavam observando com ar curioso, como quem observa alguém que vai, muito brevemente, deixar o seu posto. Depois, de uma hora para outra, seus amigos tentavam brincar por causa de seu estado de nervos, como se aquele pesadelo que vivia dentro dele, atormentando-o e sugando-o incessantemente, fosse o assunto mais excitante do mundo para se fazer graça. Schwartz irritava-o em especial, com seu alto-astral, sua vitalidade e perfeição, fazendo-o lembrar do que ele próprio fora dez anos antes.
Os amigos apareciam para jogar, sentavam-se à mesa de jogo, distribuíam as cartas, dobrando as novas para amaciá-las. Separava os ouros e via que tinha sete. Seu parceiro dizia: “Nenhum trunfo?”, e ele passava-lhe dois ouros. Podia haver coisa melhor? Poderia ser divertido e animado – fariam um grand slam. E de uma hora para outra Ivan Ilitch lembra-se daquela dor insistente, sente aquele gosto na boca e parece-lhe grotesco que, em tais circunstâncias, ele possa ter qualquer prazer em um grand slam. Olhava para seu parceiro Mihail Mihailovich dando batidinhas na mesa com suas mãos seguras e, ao invés de jogar as cartas na mesa, como fazia, empurrava-as delicadamente na direção de Ivan Ilitch de modo que ele pudesse pegá-las sem muito esforço. “Será que ele pensa que eu estou tão fraco que não posso nem esticar meu braço?”, pensa Ivan Ilitch e esquece as cartas mais altas e usa as cartas do parceiro e perde a grande jogada por três pontos. E o mais terrível é notar o quanto Mihail Mihailovich ficou aborrecido, enquanto que ele próprio não liga a mínima. E é horrível pensar na razão pela qual ele não se importa.
Todos notam que ele está com dor e dizem que, se ele está cansado, podem dar uma parada. Ele poderia deitar um pouco. Deitar? Não. Ele não está nem um pouco cansado. E terminam a partida, em silêncio, melancólicos. Ivan Ilitch sente que é ele quem faz com que se sintam assim e não consegue desligar-se disso.
Eles ceiam e a festa termina. Ivan Ilitch fica sozinho, consciente de que sua vida está envenenada e de que está envenenando a dos outros e de que esse veneno não está perdendo sua força mas, ao contrário, entranhando-se cada vez mais dentro de seu ser.
E é com essa certeza, mais a dor física e mais o terror que ele vai para cama, para na maioria das vezes ficar ali acordado, sentindo dor a maior parte da noite. E de manhã ele precisa levantar, vestir-se, ir para o Tribunal, falar, escrever ou, se não sair, ficar em casa as vinte e quatro horas do dia, o que significa vinte e quatro horas de tortura. E assim ele tinha de viver, à beira do precipício, sozinho, sem uma alma que o entendesse e dele tivesse compaixão.
Mas essa sensação desconfortável foi piorando e, embora não sendo exatamente dolorosa, evoluiu para um tipo de pressão no lado, acompanhado de desânimo e irritabilidade. A irritação foi crescendo cada vez mais, até começar a estragar a vida agradável, calma e decente que os Golovin haviam conseguido. O casal brigava cada vez com mais freqüência e há muito que toda a calma e o prazer da vida haviam caído por terra e era com dificuldade que conseguiam manter as aparências como antes. Havia repetidas discussões, até que, no mar da discórdia restaram muito poucas ilhas nas quais marido e mulher conseguiam se encontrar sem que houvesse uma explosão. E Praskovya dizia, agora não sem motivo, que seu marido tinha um temperamento difícil. Com seu característico exagero, sustentava que ele sempre havia sido assim e fora preciso muita paciência de sua parte para suportar a situação durante esses vinte anos. É bem verdade que agora era ele quem começava as discussões. Seus ataques temperamentais sempre explodiam quando estavam sentando para o jantar, freqüentemente um pouco antes da sopa. Bastava ele notar que um prato estava lascado, ou o gosto da comida não estava como deveria, ou era o filho que colocava o cotovelo em cima da mesa, ou o cabelo da filha que não estava bem penteado. E o que quer que fosse, a culpa era de Praskovya. No início ela respondia no mesmo tom e dizia-lhe coisas desagradáveis, mas depois que uma ou duas vezes, bem no início do jantar, ele entrou em tal delírio de repente, ela achou que se devia a alguma reação física que acontecia ao comer e resolveu conter-se e não reagir. Apressou-se em terminar a refeição. Praskovya orgulhou-se muito por esse exercício de autocontrole. Tendo chegado à conclusão de que o marido possuía um temperamento assustador e tornara sua vida miserável, começou a ter pena de si mesma e, quanto mais pena tinha de si mesma, mais detestava o marido. Começou a desejar que morresse, ainda que não o quisesse morto porque com ele iria-se também o salário dele. E isso provocava-lhe ainda maior irritação contra ele. Julgava-se terrivelmente infeliz justamente porque nem mesmo sua morte poderia trazer-lhe alívio e, embora disfarçasse sua irritação, a amargura sufocada só fazia aumentar sua raiva.
Depois de uma cena em que Ivan Ilitch fora especialmente injusto e depois dissera, à guisa de explicação, que sem dúvida estava irritado mas que isso se devia ao fato de não estar se sentindo bem, ela respondeu que se ele estava doente devia ser tratado e insistiu em que consultasse um médico famoso.
E ele foi. Seguiu-se tudo dentro do esperado, como sempre acontece. Houve o habitual período na sala de espera, a atitude importante assumida pelo médico – ele conhecia bem aquele ar de dignidade profissional; ele próprio o adotava no Tribunal –, os exames e as perguntas que exigiam respostas que levavam a conclusões óbvias e obviamente desnecessárias e o olhar grave, que queria dizer: “Deixe tudo conosco e nós resolveremos as coisas, nós sabemos tudo do assunto e podemos resolvê-lo para você, como faríamos com qualquer outra pessoa”. O procedimento todo era igual ao dos Tribunais. Os ares que ele adotava no Tribunal em benefício do prisioneiro, o médico adotava agora em relação a ele.
O médico disse-lhe que este e aquele sintoma indicavam que isto ou aquilo iam mal com o paciente por dentro, mas se esse diagnóstico não fosse confirmado pelos exames clínicos disto ou daquilo, então chegaremos a esta ou aquela conclusão. Se chegarmos a esta ou aquela conclusão, então... e assim por diante. Para Ivan Ilitch só importava saber uma coisa: o seu caso era sério ou não era? Mas o médico ignorou essa pergunta tão fora de propósito. Do ponto de vista do médico tratava-se de um detalhe que não merecia ser levado em consideração: o problema realmente era avaliar todas as probabilidades e decidir entre um rim flutuante ou apendicite. Não era uma questão de Ivan Ilitch viver ou morrer, mas de decidir se era rim ou apêndice. E nesse caso o médico inclinava-se mais em favor do apêndice, com a ressalva de que a análise da urina poderia indicar uma pista totalmente nova e então toda a questão teria de ser reavaliada. Tudo isso era, em menor proporção, exatamente o que Ivan Ilitch fizera de modo tão brilhante mil vezes ao lidar com as pessoas no Tribunal. O médico concluiu tudo brilhantemente, olhando triunfante por sobre os óculos para o acusado. A partir da fala do médico, Ivan Ilitch concluiu que as coisas não estavam bem, mas que para o médico e provavelmente para todas as outras pessoas isso não faria a menor diferença, enquanto que para ele era simplesmente terrível. E essa conclusão foi dolorosa, despertando-lhe um grande sentimento de autopiedade, e de amargura em relação ao médico que não se importava nem um pouco com uma questão tão importante.
Mas não disse nada, levantou, colocou o dinheiro da consulta em cima da mesa e falou com um suspiro:
– Nós, os doentes, sem dúvida fazemos muitas vezes perguntas inadequadas. Mas, diga-me, de modo geral, assim por cima, esses sintomas lhe parecem graves ou não?
O médico olhou-o severamente por cima do monóculo, como se dissesse: “Pedimos ao réu que se atenha a responder o que lhe foi perguntado ou serei obrigado a fazer com que o retirem da sala”.
– Eu já lhe disse tudo que julgava necessário dizer – respondeu o médico –, os exames devem dar mais detalhes. – E indicou-lhe a porta.
Ivan Ilitch saiu devagar, sentou-se desanimado no trenó e foi para casa. Durante todo o percurso repassava em sua mente as palavras do médico, tentando traduzir todas aquelas frases complicadas, obscuras, científicas, em linguagem normal, tentando encontrar nelas a resposta para a pergunta: “Estarei mal, realmente muito mal ou, ao final das contas, isso não é nada?”. E tinha a impressão de que a conclusão de tudo o que o médico dissera era de que sim, ele estava realmente muito mal. Tudo na rua parecia-lhe deprimente, os trenós pareciam sem vida, assim como as casas, as pessoas que passavam na rua, as lojas. E essa dor, essas fisgadas de dor que ele não conseguia identificar e que não cessavam um segundo sequer pareciam, se associadas às enigmáticas palavras do médico, ter adquirido um significado novo e muito mais sério com essa nova consciência de sua desgraça. Ivan Ilitch agora não conseguia mais desviar dela sua atenção.
Quando chegou em casa, começou a falar sobre isso com sua esposa. Ela o escutava mas, no meio do seu relato, sua filha entrou de chapéu, pronta para saírem. Um tanto relutante, ela meio que sentou para ouvir a enfadonha narrativa, mas não conseguiu controlar sua impaciência por muito tempo, e Praskovya Fiodorovna também não o escutou até o fim.
– Bem, fico muito contente! – disse ela. – Você deve se cuidar daqui por diante e tomar os remédios regularmente. Me dê a receita, vou mandar Gerassim até o farmacêutico.
Ele mal havia conseguido tomar fôlego enquanto ela estava na sala e deu um profundo suspiro quando ela se foi.
“Bem”, falou consigo mesmo, “talvez não seja nada, afinal.”
Começou a tomar o remédio e seguir as instruções do médico, as quais foram alteradas depois do exame de urina. Mas foi justamente nesse fato que se originou uma conclusão ligada à análise e o que deveria ter sido feito a partir daí. O médico naturalmente não podia ser responsabilizado, mas o fato era que as coisas não se passaram como o médico lhe disse que se passariam. Ou havia esquecido algo ou feito alguma bobagem ou estava-lhe escondendo alguma coisa.
Apesar de tudo, Ivan Ilitch ainda continuava a seguir as ordens médicas e no início encontrava algum conforto nisso.
Desde a primeira consulta ao médico a principal ocupação de Ivan Ilitch passara a ser seguir atentamente suas ordens no que se referia à higiene e aos medicamentos e observar atentamente os sintomas de sua doença, bem como o funcionamento geral de seu corpo. Seu principal interesse passou a ser justamente a doença e a saúde das outras pessoas. Quando alguém mencionava doenças, mortes ou curas em sua presença, especialmente se os sintomas se parecessem com os seus, ouvia a tudo atentamente, tentando disfarçar sua agitação, fazer perguntas e aplicar o que ouvira ao seu próprio caso.
A dor não diminuía, mas Ivan Ilitch fazia grandes esforços para acreditar que estava melhor. E até conseguia convencer-se disso, desde que nada acontecesse que o deixasse perturbado. Mas bastava que houvesse o menor aborrecimento com a esposa, ou sofresse qualquer contrariedade no Tribunal ou lhe caíssem cartas ruins no jogo e ele tornava-se de uma hora para outra extremamente sensível à sua doença. Em outra época ele teria suportado esses contratempos, esperando corrigir em seguida o que estava errado, superá-los e sair-se bem de tudo. Mas agora qualquer revés aborrecia-o e fazia-o afundar no desespero. Dizia-se coisas como: “Foi só eu me sentir um pouco melhor, o remédio começar a fazer efeito, que me acontece isso... é muito azar mesmo...”. E explodia contra sua má sorte ou contra as pessoas que estavam causando-lhe tal decepção e matando-o aos poucos. E ele tinha consciência de como esses ataques passionais o estavam matando, mas não conseguia conter-se. Qualquer um pensaria ser óbvio para ele que exasperar-se assim com as circunstâncias e com as pessoas só agravaria sua doença e que portanto ele não deveria dar atenção a esses incidentes desagradáveis. Mas ele concluíra exatamente o contrário: convencera-se de que precisava de paz e estava atento às mínimas coisas que pudessem perturbar essa paz, tomando-se de raiva ao menor movimento nessa direção. Seu estado agravava-se pelo fato de ler livros de medicina e consultar vários médicos. O progresso de sua doença era tão mínimo que, ao comparar um dia com o outro, seria capaz de enganar-se, tão sutil era a diferença. Mas quando consultava os médicos tinha a impressão de estar piorando rapidamente, assustadoramente, a cada dia. Ainda assim, ele continuava consultando médicos.
Naquele mês foi consultar outra celebridade. Essa celebridade disse exatamente o mesmo que a primeira, sendo que ele elaborou as perguntas de modo diferente e a entrevista com essa celebridade apenas fez redobrar nele as dúvidas e os temores. Depois, um amigo de um amigo seu, um médico muito bom, deu outro diagnóstico para sua doença e, embora previsse que ele acabaria por se curar, suas perguntas e hipóteses confundiram-no ainda mais e aumentaram seu ceticismo. Um homeopata fez ainda um diagnóstico diferente e deu-lhe um remédio que ele tomou escondido por uma semana, mas, no final, não tendo sentido alívio algum e tendo perdido a confiança tanto nos remédios anteriores quanto nesse novo tratamento, acabou ficando ainda mais desanimado do que antes. Um dia, uma conhecida sua mencionou uma cura através de imagens milagrosas. Ivan Ilitch flagrou-se ouvindo atentamente e começando a acreditar na história como algo concreto. Este incidente assustou-o. “A minha cabeça terá degenerado a esse ponto?”, perguntava-se. “Todas essas bobagens, esse lixo...! Não devo me deixar impressionar, mas sim escolher um médico e seguir seriamente o tratamento que ele me der. É isso que eu vou fazer. Está decidido. Não vou mais pensar nisso, só seguir o tratamento até o verão e então veremos. De agora em diante, nada de vacilações!” Isso tudo era fácil de dizer, mas impossível de colocar em prática. A dor no lado preocupava-o e parecia ficar mais forte e mais freqüente, enquanto que o gosto em sua boca era cada vez mais estranho. Tinha a sensação de estar sempre com mau hálito e seu apetite e sua força diminuíam gradativamente. Não podia mais se iludir, alguma coisa terrível, nova e importante, mais importante do que tudo o que já acontecera em sua vida, estava se passando dentro dele, alguma coisa da qual só ele estava a par. As pessoas em volta dele não entendiam, recusavam-se a entender e acreditavam que tudo no mundo continuava igual. Essa idéia atormentava-o mais do que qualquer outra coisa. Via que todos os que o rodeavam, especialmente sua esposa e filha, tão absorvidas por compromissos sociais, não só não tinham um pingo de compreensão, como ainda se irritavam com ele por andar tão deprimido e exigente, como se a culpa fosse sua. Por mais que tentassem disfarçar ele via que estava atrapalhando-lhes o caminho. Sua esposa havia adotado uma atitude em relação a sua doença, fixara-se nela e não se importava com o que ele dissesse ou fizesse.
– Você sabe – ela costumava dizer para os amigos –, Ivan Ilitch não consegue fazer como as outras pessoas e seguir o tratamento prescrito pelo médico. Um dia ele toma os remédios, mantém a dieta e vai para a cama na hora certa, mas no outro, se não sou eu a me preocupar, ele esquece dos remédios, come caviar – que o médico proibiu – e senta-se a jogar cartas até a uma da manhã.
– Ah, o que é isto? Quando foi que eu fiz isso? – ele perguntava irritado. – Só uma vez na casa de Piotr Ivanovich.
– Ah, é? E ontem na casa de Shebek?
– Qual é a diferença? Eu não teria dormido mesmo por causa da dor...
– Que seja, mas desse jeito você não fica bom e nos faz infelizes.
A atitude de Proskovya Fiodorovna em relação à doença de Ivan Ilitch, que ela expressava abertamente, insinuava que toda a doença era culpa dele próprio e só mais um dos tantos aborrecimentos que ele costumava causar à esposa. Ivan Ilitch percebia que ela deixava escapar isso tudo sem se dar conta, mas nem por isso doía-lhe menos.
No Tribunal também Ivan Ilitch percebeu, ou imaginou perceber, o mesmo tipo de atitude. Certa ocasião pareceu-lhe que as pessoas o estavam observando com ar curioso, como quem observa alguém que vai, muito brevemente, deixar o seu posto. Depois, de uma hora para outra, seus amigos tentavam brincar por causa de seu estado de nervos, como se aquele pesadelo que vivia dentro dele, atormentando-o e sugando-o incessantemente, fosse o assunto mais excitante do mundo para se fazer graça. Schwartz irritava-o em especial, com seu alto-astral, sua vitalidade e perfeição, fazendo-o lembrar do que ele próprio fora dez anos antes.
Os amigos apareciam para jogar, sentavam-se à mesa de jogo, distribuíam as cartas, dobrando as novas para amaciá-las. Separava os ouros e via que tinha sete. Seu parceiro dizia: “Nenhum trunfo?”, e ele passava-lhe dois ouros. Podia haver coisa melhor? Poderia ser divertido e animado – fariam um grand slam. E de uma hora para outra Ivan Ilitch lembra-se daquela dor insistente, sente aquele gosto na boca e parece-lhe grotesco que, em tais circunstâncias, ele possa ter qualquer prazer em um grand slam. Olhava para seu parceiro Mihail Mihailovich dando batidinhas na mesa com suas mãos seguras e, ao invés de jogar as cartas na mesa, como fazia, empurrava-as delicadamente na direção de Ivan Ilitch de modo que ele pudesse pegá-las sem muito esforço. “Será que ele pensa que eu estou tão fraco que não posso nem esticar meu braço?”, pensa Ivan Ilitch e esquece as cartas mais altas e usa as cartas do parceiro e perde a grande jogada por três pontos. E o mais terrível é notar o quanto Mihail Mihailovich ficou aborrecido, enquanto que ele próprio não liga a mínima. E é horrível pensar na razão pela qual ele não se importa.
Todos notam que ele está com dor e dizem que, se ele está cansado, podem dar uma parada. Ele poderia deitar um pouco. Deitar? Não. Ele não está nem um pouco cansado. E terminam a partida, em silêncio, melancólicos. Ivan Ilitch sente que é ele quem faz com que se sintam assim e não consegue desligar-se disso.
Eles ceiam e a festa termina. Ivan Ilitch fica sozinho, consciente de que sua vida está envenenada e de que está envenenando a dos outros e de que esse veneno não está perdendo sua força mas, ao contrário, entranhando-se cada vez mais dentro de seu ser.
E é com essa certeza, mais a dor física e mais o terror que ele vai para cama, para na maioria das vezes ficar ali acordado, sentindo dor a maior parte da noite. E de manhã ele precisa levantar, vestir-se, ir para o Tribunal, falar, escrever ou, se não sair, ficar em casa as vinte e quatro horas do dia, o que significa vinte e quatro horas de tortura. E assim ele tinha de viver, à beira do precipício, sozinho, sem uma alma que o entendesse e dele tivesse compaixão.
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