Capítulo 5
Com o passar do inverno, Mimosa tornava-se mais e mais importuna. Todas as manhãs atrasava-se para o trabalho e desculpava-se dizendo que dormira demais. Queixava-se de dores — misteriosas, embora gozasse de excelente apetite. A qualquer pretexto largava o trabalho e ia para o açude, à beira do qual permanecia admirando sua própria imagem refletida nas águas. Corriam também boatos de maior seriedade. Um dia, quando Mimosa entrou no pátio, toda contente, sacudindo a cauda e mascando um talo de feno, Quitéria abordou-a.
— Mimosa — disse ela — tenho um assunto muito sério para falar-lhe. Hoje de manhã eu a vi olhando por cima da sebe que separa a Granja de Foxwood. Do outro lado estava um dos empregados do Sr. Pilkington. Ele — embora eu estivesse longe, tenho quase certeza de que vi isso — falava com você e fazia festas em seu focinho. Que significa isso, Mimosa?
— Ele não fez! Eu não estava! Não é verdade! — gritou Mimosa, agitando-se e escarvando a terra.
— Mimosa! — Olhe-me nos olhos. Você me dá sua palavra de honra de que o homem não lhe tocou no focinho?
— Não é verdade! — repetiu Mimosa, sem olhar Quitéria de frente; depois, virou-se e galopou para o campo.
Quitéria teve uma idéia. Sem dizer nada a ninguém, foi à baia de Mimosa e virou a palha com o casco. Ali estavam escondidos um montinho de torrões de açúcar e vários novelos de fitas de diversas cores.
Três dias mais tarde, Mimosa desapareceu. Durante algumas semanas ninguém teve notícias de seu paradeiro, até que os pombos trouxeram o informe de que a haviam visto na parte mais afastada de Willingdon, atrelada a uma bonita carroça vermelha e preta, em frente a uma estalagem. Um homem gordo, de rosto vermelho, calças xadrez e polaina, com todo o tipo de estalajadeiro, dava-lhe pancadinhas no focinho e oferecia-lhe torrões de açúcar. Seu pêlo fora recentemente rasqueteado e ela usava uma fita escarlate no topete. Parecia muito satisfeita, segundo disseram os pombos. Os bichos nunca mais falaram em Mimosa.
Em janeiro, o tempo piorou terrivelmente. A terra dura como ferro, não permitia o trabalho no campo. Houve muitas reuniões no celeiro grande, e os porcos passaram ao planejamento dos trabalhos a serem realizados na estação seguinte. Fora acertado que os porcos, sendo manifestamente mais inteligentes do que os outros animais, decidiriam todas as questões referentes à política agrícola da granja, embora suas decisões devessem ser ratificadas pelo voto da maioria. Essa combinação teria funcionado muito bem, não fossem as disputas entre Bola-de-Neve e Napoleão. Esses dois discordavam sobre todos os pontos em que a discordância era possível. Se um deles propunha o aumento da área de plantio de cevada, podia-se ter certeza de que o outro proporia uma área maior para o cultivo da aveia, e se um dissesse que tais e tais terrenos eram ótimos para plantar repolhos, o outro diria que não prestavam senão para mandioca. Cada um tinha seus seguidores e havia debates violentos. Nas reuniões, Bola-de-Neve freqüentemente obtinha a maioria, por seus discursos brilhantes, porém Napoleão era o melhor na cabala de apoio durante os intervalos. Obtinha êxito especial com as ovelhas. Ultimamente estas haviam criado o hábito de balir “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” em ocasiões próprias ou impróprias, e muitas vezes interrompiam a reunião dessa maneira. Notou-se que mostravam especial disposição de atacar o “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, justamente quando Bola-de-Neve chegava a um momento crucial em seus discursos. Bola-de-Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na casa-grande, e andava com a cabeça cheia de planos sobre invenções e melhoramentos. Falava com grande conhecimento de causa sabre drenagens, ensilagem, escórias básicas, e havia elaborado um complexo esquema segundo o qual os bichos evacuariam diretamente no campo, em lugares diferentes cada dia, para economizar o trabalho do transporte de esterco. Napoleão não criava projetos próprios, mas dizia com toda calma que os de Bola-de-Neve dariam em nada e parecia aguardar sua oportunidade. De todas as divergências, porém, nenhuma foi tão séria como a do moinho de vento.
Não muito longe das casas havia uma colina que era o ponto mais alto da granja. Depois de realizar uma pesquisa no solo, Bola-de-Neve declarou ser o local ideal para a construção de um moinho de vento, que poderia acionar um dínamo e suprir de energia elétrica toda a granja. As baias teriam luz elétrica e aquecimento no inverno, haveria força para uma serra circular, para moagem de cereais, para o corte da beterraba e para um sistema de ordenha elétrica. Os animais nunca tinham sequer ouvido falar nessas coisas (pois a granja era antiquada e sua aparelhagem das mais primitivas) e escutaram boquiabertos Bola-de-Neve fazer desfilar como por encanto, ante sua imaginação, as figuras dos aparelhos mais espetaculares, máquinas que fariam todo serviço em seu lugar, enquanto eles iriam aproveitar a folga pastando ou cultivando a mente, por meio da leitura e da conversação.
Em poucas semanas os planos de Bola-de-Neve para o moinho de vento estavam prontos. Os detalhes mecânicos foram retirados principalmente de três livros que haviam pertencido ao Sr. Jones — Mil Coisas Úteis para Sua Casa, Seja o Seu Próprio Pedreiro e Eletricidade para Principiantes. Bola-de-Neve utilizou como estúdio um galpão que antes abrigara incubadoras e cujo piso era de madeira lisa, própria para desenhar. Lá permanecia horas a fio. Com os livros abertos sob o peso de uma pedra, e uma barra de giz entre as duas pontas do casco, andava rapidamente para lá e para cá, traçando linhas e mais linhas e soltando guinchos de excitação.
Gradualmente, os planos se transformaram numa complicada massa de manivelas e engrenagens que cobria quase metade do assoalho e que os outros animais achavam completamente ininteligível, mas impressionante. Pelo menos uma vez por dia, cada um vinha olhar os desenhos de Bola-de-Neve. Até as galinhas e os patos apareciam, pisando com grande dificuldade para não estragar os riscos de giz. Apenas Napoleão permaneceu desinteressado. Havia-se declarado contra o moinho de vento desde o início. Um dia, entretanto, chegou inesperadamente para examinar os planos. Caminhou pesadamente em volta do galpão, olhou detidamente cada detalhe do projeto, farejou-o uma ou duas vezes, depois deteve-se a contemplá-lo por alguns instantes pelo canto dos olhos; então, inesperadamente, levantou a pata, urinou sobre os planos e caminhou para fora sem proferir palavra. A granja estava profundamente dividida com respeito ao moinho de vento. Bola-de-Neve não negava que sua construção resultaria em uma empresa difícil. Seria necessário quebrar pedras e transformá-las em paredes; depois, construir as pás; haveria necessidade de dínamos e fios (onde seriam encontrados, Bola-de-Neve não dizia). Mas afirmava que tudo poderia ser feito dentro de um ano. Depois disso — dizia — os bichos economizariam tanta energia, que seriam necessários apenas. três dias de trabalho por semana. Napoleão, por outro lado, argumentava que a grande necessidade do momento era aumentar a produção de alimentos e que morreriam de fome se perdessem tempo com o moinho de vento. Os animais dividiram-se em duas facções que se alinhavam sob os slogans: “Vote em Bola-de-Neve e na semana de três dias” e “Vote em Napoleão e na manjedoura cheia”. Benjamim foi o único animal que não aderiu a lado nenhum. Recusava-se a crer, tanto em que haveria fartura de alimento, como em que o moinho de vento economizaria trabalho. Moinho ou não moinho, dizia ele, a vida prosseguiria como sempre fora — ou seja, mal.
Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem sabiam que, embora os humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo, poderiam fazer outra tentativa, mais reforçada, para retomar a granja e restaurar Jones. Tinham as melhores razões para tentar, pois a notícia, da derrota, se espalhara pela região e tornara os animais das granjas vizinhas mais rebeldes do que nunca. Como sempre, Bola-de-Neve e Napoleão não estavam de acordo. Segundo Napoleão o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se no seu emprego. Bola-de-Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas. O primeiro argumentava que, se não fossem capazes de defender-se, estavam destinados à submissão; o outro alegava que, fomentando revoluções em toda parte, não teriam necessidade de defender-se. Os animais ouviam Napoleão, depois Bola-de-Neve e não chegavam à conclusão sobre quem tinha razão; á verdade é que estavam sempre de acordo com, aquele que falava no momento.
Por fim, chegou o dia em que os planos de Bola-de-Neve ficaram prontos. Na Reunião do domingo seguinte deveria ser posta em votação a questão de começar ou não o trabalho no moinho de vento.
Quando os animais se reuniram no grande celeiro, Bola-de-Neve levantou-se e, embora fosse interrompido de vez em quando pelo balido das ovelhas, expôs suas razões em favor da construção do moinho de vento. Depois levantou-se Napoleão para rebater.
Disse calmamente que o moinho de vento era uma tolice, que não aconselhava ninguém a votar a favor daquilo. Sentou-se de novo; falara durante trinta segundos, se tanto, e parecia indiferente ao resultado.
Ante isso, Bola-de-Neve pôs-se de pé outra vez, calou a gritos as ovelhas que começavam a balir de novo e irrompeu num candente apelo em favor do moinho de vento. Até então, os bichos estavam quase igualmente divididos em suas simpatias, mas num instante de eloqüência Bola-de-Neve arrastou a todos. Com sentenças ardentes, pintou um quadro de como poderia ser a Granja dos Bichos quando o trabalho sórdido fosse sacudido de sobre os ombros de todos. Sua imaginação ia agora além de moinhos de cereais e cortadores de nabos. A eletricidade — disse ele — poderia movimentar debulhadoras, arados, grades rolos compressores, ceifeiras e atadeiras, além de fornecer a cada baia sua própria luz, água quente e fria, e um aquecedor elétrico. Quando parou de falar, não havia dúvidas quanto ao resultado da votação. Porém, exatamente nesse momento Napoleão levantou-se e, dando uma estranha olhadela de viés para Bola-de-Neve, soltou um guincho estridente que ninguém ouvira antes.
Ouviu-se um terrível ladrido lá fora e nove cães enormes, usando coleiras tachonadas com bronze, entraram latindo no celeiro. Jogaram-se sobre Bola-de-Neve, que saltou do lugar onde estava, mal a tempo de escapar àquelas presas. Num instante, saiu porta fora com os cães em seu encalço. Espantados e aterrorizados demais para falar, os bichos amontoaram-se na porta para observar a caçada. Bola-de-Neve corria pelo campo em direção à estrada, como só um porco sabe correr, mas os cachorros se aproximavam. De repente ele caiu e pareceu que o apanhariam. Mas levantou-se outra vez e correu como um desesperado. Já os cães o alcançavam de novo. Um deles quase fechou as mandíbulas no rabicho de Bola-de-Neve, que o sacudiu bem na hora. Aí fez um esforço extremo e, ganhando algumas polegadas, enfiou-se por um buraco da sebe e sumiu.
Calados e aterrados, os animais voltaram furtivamente para dentro do celeiro. Logo chegaram os cachorros, latindo. A princípio ninguém pôde imaginar de onde tinham vindo — aquelas criaturas, mas o mistério logo se aclarou: eram os cachorrinhos que Napoleão havia tomado às mães e criado secretamente. Embora ainda não tivessem completado o crescimento, já eram uns cães enormes e mal-encarados como lobos. Permaneceram junto a Napoleão e notou-se que sacudiam a cauda para ele da mesma maneira como os outros cachorros costumavam fazer para Jones.
Napoleão, com os cachorros a segui-lo, subiu para o estrado, de onde o Major fizera seu discurso. Anunciou que daquele momento em diante terminariam as Reuniões dos domingos de manhã. Eram desnecessárias perdas de tempo. Para o futuro, todos os problemas relacionados com o funcionamento da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos, presidida por ele, que se reuniria em particular e depois comunicaria suas decisões aos demais. Os animais continuariam a reunir-se aos domingos para saudar a bandeira, cantar Bichos da Inglaterra e receber as ordens da semana; não haveria debates.
A despeito do estado de choque em que a expulsão de Bola-de-Neve os deixara, os bichos ficaram desalentados com aquela notícia. Vários teriam protestado, se conseguissem achar os argumentos. Até Sansão ficou um tanto perturbado. Murchou as orelhas, sacudiu o topete várias vezes e fez um esforço tremendo para pôr em ordem as idéias; mas afinal não conseguiu pensar nada para dizer. Alguns porcos, porém, tinham maior flexibilidade de raciocínio. Quatro jovens porcos castrados, colocados na primeira fila, soltaram altos guinchos de protesto e levantaram-se falando a um só tempo. Mas os cachorros, junto de Napoleão, soltaram um rosnado fundo e ameaçador, e os porcos calaram-se, sentando-se de novo. Aí estrondaram as ovelhas um formidável balido de “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” que durou cerca de um quarto de hora, acabando com qualquer hipótese de discussão. Mais tarde, Garganta foi mandado percorrer a granja para explicar a nova situação aos demais.
— Camaradas — disse — tenho certeza de que cada animal compreende o sacrifício que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus ombros mais esse trabalho. Não penseis, camaradas, que a liderança seja um prazer. Pelo contrário, é uma enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais que o Camarada Napoleão crê firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz seria ele se pudesse deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas, às vezes, poderíeis tomar decisões erradas, camaradas; então, onde iríamos parar? Suponhamos que tivésseis decidido seguir Bola-de-Neve com suas miragens de moinho de vento — logo Bola-de-Neve — que, como sabemos, não passava de um criminoso?
— Ele lutou bravamente na Batalha do Estábulo — disse alguém.
— Bravura não basta — respondeu Garganta.
— A lealdade e a obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito, tempo virá em que verificaremos que o papel de Bola-de-Neve foi um tanto exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina férrea! Este é o lema para os dias que correm. Um passo em falso e o inimigo estará sobre nós. Por certo, camaradas, não quereis Jones de volta, hem?
Uma vez mais esse argumento era irrespondível. Sem dúvida alguma, os bichos não desejavam Jones de volta; e se a realização dos debates do domingo podia ter essa conseqüência, que cessassem os debates. Sansão, que já tivera tempo de pensar, expressou o sentimento geral: “Se é o que diz o Camarada Napoleão, deve estar certo”. E daí por diante adotou a máxima “Napoleão tem sempre razão” acrescentando-a ao seu lema particular “Trabalharei mais ainda”.
Já com o tempo melhor, iniciou-se a arada da primavera. O galpão em que Bola-de-Neve desenhara seus planos para o moinho de vento foi trancado e os desenhos provavelmente apagados. Todos os domingos, às dez horas, os animais reuniam-se no grande celeiro para receber as ordens da semana. A caveira do velho Major, já sem carnes, fora desenterrada e colocada sobre um toco ao pé do mastro, junto à espingarda. Após o hasteamento da bandeira, os animais deviam desfilar reverentemente perante a caveira, antes de entrar no celeiro. Já não sentavam todos juntos, como antes. Napoleão, Garganta e outro porco chamado Mínimo, dono de notável talento para compor canções e poemas, aboletavam-se sobre a parte fronteira da plataforma, os nove cachorros em semicírculo ao redor deles e os outros porcos atrás. O restante dos animais ficava de frente para eles, no chão do celeiro. Napoleão lia as ordens da semana num áspero estilo militar e, após cantarem uma única vez Bichos da Inglaterra, os animais se dispersavam.
No terceiro domingo após a expulsão de Bola-de-Neve, os bichos ficaram um tanto surpresos ao ouvirem Napoleão anunciar que o moinho de vento seria, afinal de contas, construído. Não deu qualquer explicação sobre o motivo que o fizera mudar de idéia, apenas alertando os animais de que essa tarefa extraordinária significaria trabalho muito duro, podendo até ser necessário reduzir as rações. Os planos, entretanto, haviam, sido elaborados até o último detalhe. Uma comissão especial de porcos trabalhara neles durante as três últimas semanas. A construção do moinho de vento, com vários outros melhoramentos, deveria levar dois anos.
Naquela tarde, Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca for a contra a construção do moinho de vento. Pelo contrário, ele é que advogara a idéia desde o início, e o plano que Bola-de-Neve havia desenhado no assoalho do galpão das incubadoras fora, na realidade, roubado de entre os papéis de Napoleão. O moinho de vento, era, em verdade, criação do próprio Napoleão.
— Por que, então — perguntou alguém — ele tanto falou contra o moinho?
Garganta olhou, manhoso.
— Aí é que estava a esperteza do Camarada Napoleão — disse. — Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa. Agora que Bola-de-Neve saíra do caminho, o plano podia prosseguir sem sua interferência. Isso era uma coisa chamada tática.
Repetiu inúmeras vezes “Tática, camaradas, tática!”, saltando à roda e sacudindo o rabicho com um riso jovial. Os bichos não estavam muito certos do significado da palavra, mas Garganta falava tão persuasivamente e os três cachorros — que por coincidência estavam com ele — rosnavam tão ameaçadoramente, que aceitaram a explicação sem mais perguntas.
— Mimosa — disse ela — tenho um assunto muito sério para falar-lhe. Hoje de manhã eu a vi olhando por cima da sebe que separa a Granja de Foxwood. Do outro lado estava um dos empregados do Sr. Pilkington. Ele — embora eu estivesse longe, tenho quase certeza de que vi isso — falava com você e fazia festas em seu focinho. Que significa isso, Mimosa?
— Ele não fez! Eu não estava! Não é verdade! — gritou Mimosa, agitando-se e escarvando a terra.
— Mimosa! — Olhe-me nos olhos. Você me dá sua palavra de honra de que o homem não lhe tocou no focinho?
— Não é verdade! — repetiu Mimosa, sem olhar Quitéria de frente; depois, virou-se e galopou para o campo.
Quitéria teve uma idéia. Sem dizer nada a ninguém, foi à baia de Mimosa e virou a palha com o casco. Ali estavam escondidos um montinho de torrões de açúcar e vários novelos de fitas de diversas cores.
Três dias mais tarde, Mimosa desapareceu. Durante algumas semanas ninguém teve notícias de seu paradeiro, até que os pombos trouxeram o informe de que a haviam visto na parte mais afastada de Willingdon, atrelada a uma bonita carroça vermelha e preta, em frente a uma estalagem. Um homem gordo, de rosto vermelho, calças xadrez e polaina, com todo o tipo de estalajadeiro, dava-lhe pancadinhas no focinho e oferecia-lhe torrões de açúcar. Seu pêlo fora recentemente rasqueteado e ela usava uma fita escarlate no topete. Parecia muito satisfeita, segundo disseram os pombos. Os bichos nunca mais falaram em Mimosa.
Em janeiro, o tempo piorou terrivelmente. A terra dura como ferro, não permitia o trabalho no campo. Houve muitas reuniões no celeiro grande, e os porcos passaram ao planejamento dos trabalhos a serem realizados na estação seguinte. Fora acertado que os porcos, sendo manifestamente mais inteligentes do que os outros animais, decidiriam todas as questões referentes à política agrícola da granja, embora suas decisões devessem ser ratificadas pelo voto da maioria. Essa combinação teria funcionado muito bem, não fossem as disputas entre Bola-de-Neve e Napoleão. Esses dois discordavam sobre todos os pontos em que a discordância era possível. Se um deles propunha o aumento da área de plantio de cevada, podia-se ter certeza de que o outro proporia uma área maior para o cultivo da aveia, e se um dissesse que tais e tais terrenos eram ótimos para plantar repolhos, o outro diria que não prestavam senão para mandioca. Cada um tinha seus seguidores e havia debates violentos. Nas reuniões, Bola-de-Neve freqüentemente obtinha a maioria, por seus discursos brilhantes, porém Napoleão era o melhor na cabala de apoio durante os intervalos. Obtinha êxito especial com as ovelhas. Ultimamente estas haviam criado o hábito de balir “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” em ocasiões próprias ou impróprias, e muitas vezes interrompiam a reunião dessa maneira. Notou-se que mostravam especial disposição de atacar o “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, justamente quando Bola-de-Neve chegava a um momento crucial em seus discursos. Bola-de-Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na casa-grande, e andava com a cabeça cheia de planos sobre invenções e melhoramentos. Falava com grande conhecimento de causa sabre drenagens, ensilagem, escórias básicas, e havia elaborado um complexo esquema segundo o qual os bichos evacuariam diretamente no campo, em lugares diferentes cada dia, para economizar o trabalho do transporte de esterco. Napoleão não criava projetos próprios, mas dizia com toda calma que os de Bola-de-Neve dariam em nada e parecia aguardar sua oportunidade. De todas as divergências, porém, nenhuma foi tão séria como a do moinho de vento.
Não muito longe das casas havia uma colina que era o ponto mais alto da granja. Depois de realizar uma pesquisa no solo, Bola-de-Neve declarou ser o local ideal para a construção de um moinho de vento, que poderia acionar um dínamo e suprir de energia elétrica toda a granja. As baias teriam luz elétrica e aquecimento no inverno, haveria força para uma serra circular, para moagem de cereais, para o corte da beterraba e para um sistema de ordenha elétrica. Os animais nunca tinham sequer ouvido falar nessas coisas (pois a granja era antiquada e sua aparelhagem das mais primitivas) e escutaram boquiabertos Bola-de-Neve fazer desfilar como por encanto, ante sua imaginação, as figuras dos aparelhos mais espetaculares, máquinas que fariam todo serviço em seu lugar, enquanto eles iriam aproveitar a folga pastando ou cultivando a mente, por meio da leitura e da conversação.
Em poucas semanas os planos de Bola-de-Neve para o moinho de vento estavam prontos. Os detalhes mecânicos foram retirados principalmente de três livros que haviam pertencido ao Sr. Jones — Mil Coisas Úteis para Sua Casa, Seja o Seu Próprio Pedreiro e Eletricidade para Principiantes. Bola-de-Neve utilizou como estúdio um galpão que antes abrigara incubadoras e cujo piso era de madeira lisa, própria para desenhar. Lá permanecia horas a fio. Com os livros abertos sob o peso de uma pedra, e uma barra de giz entre as duas pontas do casco, andava rapidamente para lá e para cá, traçando linhas e mais linhas e soltando guinchos de excitação.
Gradualmente, os planos se transformaram numa complicada massa de manivelas e engrenagens que cobria quase metade do assoalho e que os outros animais achavam completamente ininteligível, mas impressionante. Pelo menos uma vez por dia, cada um vinha olhar os desenhos de Bola-de-Neve. Até as galinhas e os patos apareciam, pisando com grande dificuldade para não estragar os riscos de giz. Apenas Napoleão permaneceu desinteressado. Havia-se declarado contra o moinho de vento desde o início. Um dia, entretanto, chegou inesperadamente para examinar os planos. Caminhou pesadamente em volta do galpão, olhou detidamente cada detalhe do projeto, farejou-o uma ou duas vezes, depois deteve-se a contemplá-lo por alguns instantes pelo canto dos olhos; então, inesperadamente, levantou a pata, urinou sobre os planos e caminhou para fora sem proferir palavra. A granja estava profundamente dividida com respeito ao moinho de vento. Bola-de-Neve não negava que sua construção resultaria em uma empresa difícil. Seria necessário quebrar pedras e transformá-las em paredes; depois, construir as pás; haveria necessidade de dínamos e fios (onde seriam encontrados, Bola-de-Neve não dizia). Mas afirmava que tudo poderia ser feito dentro de um ano. Depois disso — dizia — os bichos economizariam tanta energia, que seriam necessários apenas. três dias de trabalho por semana. Napoleão, por outro lado, argumentava que a grande necessidade do momento era aumentar a produção de alimentos e que morreriam de fome se perdessem tempo com o moinho de vento. Os animais dividiram-se em duas facções que se alinhavam sob os slogans: “Vote em Bola-de-Neve e na semana de três dias” e “Vote em Napoleão e na manjedoura cheia”. Benjamim foi o único animal que não aderiu a lado nenhum. Recusava-se a crer, tanto em que haveria fartura de alimento, como em que o moinho de vento economizaria trabalho. Moinho ou não moinho, dizia ele, a vida prosseguiria como sempre fora — ou seja, mal.
Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem sabiam que, embora os humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo, poderiam fazer outra tentativa, mais reforçada, para retomar a granja e restaurar Jones. Tinham as melhores razões para tentar, pois a notícia, da derrota, se espalhara pela região e tornara os animais das granjas vizinhas mais rebeldes do que nunca. Como sempre, Bola-de-Neve e Napoleão não estavam de acordo. Segundo Napoleão o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se no seu emprego. Bola-de-Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas. O primeiro argumentava que, se não fossem capazes de defender-se, estavam destinados à submissão; o outro alegava que, fomentando revoluções em toda parte, não teriam necessidade de defender-se. Os animais ouviam Napoleão, depois Bola-de-Neve e não chegavam à conclusão sobre quem tinha razão; á verdade é que estavam sempre de acordo com, aquele que falava no momento.
Por fim, chegou o dia em que os planos de Bola-de-Neve ficaram prontos. Na Reunião do domingo seguinte deveria ser posta em votação a questão de começar ou não o trabalho no moinho de vento.
Quando os animais se reuniram no grande celeiro, Bola-de-Neve levantou-se e, embora fosse interrompido de vez em quando pelo balido das ovelhas, expôs suas razões em favor da construção do moinho de vento. Depois levantou-se Napoleão para rebater.
Disse calmamente que o moinho de vento era uma tolice, que não aconselhava ninguém a votar a favor daquilo. Sentou-se de novo; falara durante trinta segundos, se tanto, e parecia indiferente ao resultado.
Ante isso, Bola-de-Neve pôs-se de pé outra vez, calou a gritos as ovelhas que começavam a balir de novo e irrompeu num candente apelo em favor do moinho de vento. Até então, os bichos estavam quase igualmente divididos em suas simpatias, mas num instante de eloqüência Bola-de-Neve arrastou a todos. Com sentenças ardentes, pintou um quadro de como poderia ser a Granja dos Bichos quando o trabalho sórdido fosse sacudido de sobre os ombros de todos. Sua imaginação ia agora além de moinhos de cereais e cortadores de nabos. A eletricidade — disse ele — poderia movimentar debulhadoras, arados, grades rolos compressores, ceifeiras e atadeiras, além de fornecer a cada baia sua própria luz, água quente e fria, e um aquecedor elétrico. Quando parou de falar, não havia dúvidas quanto ao resultado da votação. Porém, exatamente nesse momento Napoleão levantou-se e, dando uma estranha olhadela de viés para Bola-de-Neve, soltou um guincho estridente que ninguém ouvira antes.
Ouviu-se um terrível ladrido lá fora e nove cães enormes, usando coleiras tachonadas com bronze, entraram latindo no celeiro. Jogaram-se sobre Bola-de-Neve, que saltou do lugar onde estava, mal a tempo de escapar àquelas presas. Num instante, saiu porta fora com os cães em seu encalço. Espantados e aterrorizados demais para falar, os bichos amontoaram-se na porta para observar a caçada. Bola-de-Neve corria pelo campo em direção à estrada, como só um porco sabe correr, mas os cachorros se aproximavam. De repente ele caiu e pareceu que o apanhariam. Mas levantou-se outra vez e correu como um desesperado. Já os cães o alcançavam de novo. Um deles quase fechou as mandíbulas no rabicho de Bola-de-Neve, que o sacudiu bem na hora. Aí fez um esforço extremo e, ganhando algumas polegadas, enfiou-se por um buraco da sebe e sumiu.
Calados e aterrados, os animais voltaram furtivamente para dentro do celeiro. Logo chegaram os cachorros, latindo. A princípio ninguém pôde imaginar de onde tinham vindo — aquelas criaturas, mas o mistério logo se aclarou: eram os cachorrinhos que Napoleão havia tomado às mães e criado secretamente. Embora ainda não tivessem completado o crescimento, já eram uns cães enormes e mal-encarados como lobos. Permaneceram junto a Napoleão e notou-se que sacudiam a cauda para ele da mesma maneira como os outros cachorros costumavam fazer para Jones.
Napoleão, com os cachorros a segui-lo, subiu para o estrado, de onde o Major fizera seu discurso. Anunciou que daquele momento em diante terminariam as Reuniões dos domingos de manhã. Eram desnecessárias perdas de tempo. Para o futuro, todos os problemas relacionados com o funcionamento da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos, presidida por ele, que se reuniria em particular e depois comunicaria suas decisões aos demais. Os animais continuariam a reunir-se aos domingos para saudar a bandeira, cantar Bichos da Inglaterra e receber as ordens da semana; não haveria debates.
A despeito do estado de choque em que a expulsão de Bola-de-Neve os deixara, os bichos ficaram desalentados com aquela notícia. Vários teriam protestado, se conseguissem achar os argumentos. Até Sansão ficou um tanto perturbado. Murchou as orelhas, sacudiu o topete várias vezes e fez um esforço tremendo para pôr em ordem as idéias; mas afinal não conseguiu pensar nada para dizer. Alguns porcos, porém, tinham maior flexibilidade de raciocínio. Quatro jovens porcos castrados, colocados na primeira fila, soltaram altos guinchos de protesto e levantaram-se falando a um só tempo. Mas os cachorros, junto de Napoleão, soltaram um rosnado fundo e ameaçador, e os porcos calaram-se, sentando-se de novo. Aí estrondaram as ovelhas um formidável balido de “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” que durou cerca de um quarto de hora, acabando com qualquer hipótese de discussão. Mais tarde, Garganta foi mandado percorrer a granja para explicar a nova situação aos demais.
— Camaradas — disse — tenho certeza de que cada animal compreende o sacrifício que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus ombros mais esse trabalho. Não penseis, camaradas, que a liderança seja um prazer. Pelo contrário, é uma enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais que o Camarada Napoleão crê firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz seria ele se pudesse deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas, às vezes, poderíeis tomar decisões erradas, camaradas; então, onde iríamos parar? Suponhamos que tivésseis decidido seguir Bola-de-Neve com suas miragens de moinho de vento — logo Bola-de-Neve — que, como sabemos, não passava de um criminoso?
— Ele lutou bravamente na Batalha do Estábulo — disse alguém.
— Bravura não basta — respondeu Garganta.
— A lealdade e a obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito, tempo virá em que verificaremos que o papel de Bola-de-Neve foi um tanto exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina férrea! Este é o lema para os dias que correm. Um passo em falso e o inimigo estará sobre nós. Por certo, camaradas, não quereis Jones de volta, hem?
Uma vez mais esse argumento era irrespondível. Sem dúvida alguma, os bichos não desejavam Jones de volta; e se a realização dos debates do domingo podia ter essa conseqüência, que cessassem os debates. Sansão, que já tivera tempo de pensar, expressou o sentimento geral: “Se é o que diz o Camarada Napoleão, deve estar certo”. E daí por diante adotou a máxima “Napoleão tem sempre razão” acrescentando-a ao seu lema particular “Trabalharei mais ainda”.
Já com o tempo melhor, iniciou-se a arada da primavera. O galpão em que Bola-de-Neve desenhara seus planos para o moinho de vento foi trancado e os desenhos provavelmente apagados. Todos os domingos, às dez horas, os animais reuniam-se no grande celeiro para receber as ordens da semana. A caveira do velho Major, já sem carnes, fora desenterrada e colocada sobre um toco ao pé do mastro, junto à espingarda. Após o hasteamento da bandeira, os animais deviam desfilar reverentemente perante a caveira, antes de entrar no celeiro. Já não sentavam todos juntos, como antes. Napoleão, Garganta e outro porco chamado Mínimo, dono de notável talento para compor canções e poemas, aboletavam-se sobre a parte fronteira da plataforma, os nove cachorros em semicírculo ao redor deles e os outros porcos atrás. O restante dos animais ficava de frente para eles, no chão do celeiro. Napoleão lia as ordens da semana num áspero estilo militar e, após cantarem uma única vez Bichos da Inglaterra, os animais se dispersavam.
No terceiro domingo após a expulsão de Bola-de-Neve, os bichos ficaram um tanto surpresos ao ouvirem Napoleão anunciar que o moinho de vento seria, afinal de contas, construído. Não deu qualquer explicação sobre o motivo que o fizera mudar de idéia, apenas alertando os animais de que essa tarefa extraordinária significaria trabalho muito duro, podendo até ser necessário reduzir as rações. Os planos, entretanto, haviam, sido elaborados até o último detalhe. Uma comissão especial de porcos trabalhara neles durante as três últimas semanas. A construção do moinho de vento, com vários outros melhoramentos, deveria levar dois anos.
Naquela tarde, Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca for a contra a construção do moinho de vento. Pelo contrário, ele é que advogara a idéia desde o início, e o plano que Bola-de-Neve havia desenhado no assoalho do galpão das incubadoras fora, na realidade, roubado de entre os papéis de Napoleão. O moinho de vento, era, em verdade, criação do próprio Napoleão.
— Por que, então — perguntou alguém — ele tanto falou contra o moinho?
Garganta olhou, manhoso.
— Aí é que estava a esperteza do Camarada Napoleão — disse. — Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa. Agora que Bola-de-Neve saíra do caminho, o plano podia prosseguir sem sua interferência. Isso era uma coisa chamada tática.
Repetiu inúmeras vezes “Tática, camaradas, tática!”, saltando à roda e sacudindo o rabicho com um riso jovial. Os bichos não estavam muito certos do significado da palavra, mas Garganta falava tão persuasivamente e os três cachorros — que por coincidência estavam com ele — rosnavam tão ameaçadoramente, que aceitaram a explicação sem mais perguntas.
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