Capítulo quatro
DIÁRIO DE JONATHAN HARKER
(Continuação) Acordei na minha própria cama. Se não sonhei, o Conde deve ter me trazido para aqui. Havia algumas pequenas provas de que eu sonhara. Minhas roupas estavam dobradas de modo diferente do que costumo dobrá-las e meu relógio sem corda. Mas isso não constitui prova suficiente. Uma coisa me satisfaz: se o Conde me trouxe para aqui e tirou minha roupa, devia estar com pressa, pois não mexeu em meus bolsos.
18 de maio — Desci, outra vez, à luz do dia, pois preciso saber a verdade. Quando cheguei à porta no alto da estrada, encontrei-a fechada pelo lado de dentro.
Receio que não tenha sido sonho.
19 de maio — Estou em maus lençóis, sem dúvida. Ontem à noite, o Conde me pediu, com bons modos, para escrever três cartas, uma dizendo que meu trabalho aqui já está quase pronto, e que vou regressar dentro de poucos dias; outra dizendo que vou partir no dia seguinte ao da carta, pela manhã, e a terceira dizendo que saí do castelo e cheguei a Bistritz. Na situação atual, seria loucura rebelar-me abertamente contra o Conde, quando me encontro em seu poder. Minha única esperança é ganhar tempo, esperando uma oportunidade que possa surgir. Assim, fingi concordar e perguntei ao Conde que datas deveria pôr nas cartas. Ele refletiu um minuto, depois disse: — A primeira deve ser de 12 de junho, a segunda de 19 e a terceira de 29 de junho.
Deus que me ajude!
28 de maio — Há uma possibilidade de fuga ou, pelo menos, de mandar notícias para a Inglaterra. Um bando de ciganos está acampado no pátio do castelo.
Vou escrever algumas cartas e tentar fazer com que os ciganos as punham no correio. Já falei com eles através da janela do meu quarto, para travar conhecimento. Eles tiraram os chapéus, cumprimentaram-me e fizeram muitos sinais, que, contudo, não pude compreender, como não entendi o que diziam...
Escrevi as cartas. A carta para Mina taquigrafada e outra para o Sr. Hawkins, pedindo-lhe, apenas, para se avistar com Mina, à qual expliquei a situação, mas sem contar os horrores que me cercam e que a iriam mortificar. Se as cartas não seguirem, o Conde também não saberá meu segredo ou a extensão de meu conhecimento...
Atirei as cartas pela janela, junto com uma moeda de ouro, e fiz sinais, indicando que queria que as pusessem no correio. O homem que as apanhou apertou as cartas de encontro ao peito e curvou-se, tirando o chapéu.
O Conde apareceu algum tempo depois. Sentou-se perto de mim e disse, com voz muito calma, enquanto abria duas cartas: — Os ciganos me entregaram estas duas cartas. Veja! Uma é do senhor para meu amigo Peter Hawkins e a outra — viu os símbolos estranhos quando abriu o envelope, fechou a cara e seus olhos brilharam sinistramente — a outra é uma... um ultraje à amizade e à hospitalidade! Não está assinada. Não nos importa, pois.
E, calmamente, atirou a carta e o envelope na chama da lâmpada. Depois, prosseguiu: — Naturalmente, vou enviar a carta para Hawkins, uma vez que foi escrita pelo senhor. Suas cartas são sagradas para mim. Desculpe-me, porque a abri, na ignorância em que estava. Quer sobrescritá-la de novo?
Entregou-me a carta, com toda a cortesia, e não me restava outra coisa senão metê-la de novo no envelope e sobrescritá-la. Quando o Conde saiu do aposento, ouvi o barulho da chave que era girada de leve na fechadura. Um minuto depois, tentei abrir a porta, e vi que estava trancada.
Quando, uma ou duas horas depois, o Conde voltou, teve de me acordar, pois eu dormira no sofá.
— Está cansado, meu amigo? — perguntou, amavelmente. — Vá para a cama. Não posso ter o prazer de conversar esta noite, pois tenho muita coisa que fazer. Mas estou certo que o senhor dormirá.
Fui para o meu quarto, meti-me na cama e, por mais estranho que pareça, dormi sem sonhar.
31 de maio — Quando acordei esta manhã, tive idéia de tirar de minha mala papel e envelope, para metê-los no bolso, a fim de escrever, se aparecesse alguma oportunidade, mas nova e desagradável surpresa me aguardava: tinham desaparecido de minha mala todos os papéis em branco, assim como minhas anotações e todos os meus documentos, tudo que me seria útil quando conseguisse sair do castelo. Também o terno com que eu viajara tinha desaparecido, assim como meu sobretudo.
17 de junho — Esta manhã, quando estava sentado na cama, pensativo, ouvi ruído de chicotadas e de cascos de cavalos no caminho que fica para além do pátio. Corri à janela e avistei dois carretões, puxados cada um por oito cavalos, havendo um eslovaco, com seu chapéu característico, junto de cada parelha. Corri para a porta, pensando em descer e tentar alcançá-los através do vestíbulo principal, que eles poderiam abrir. Nova decepção: minha porta estava fechada pelo lado de fora.
Corri à janela e gritei. Os homens olharam-me estupidamente, não atenderam ao chamado.
24 de junho, antes do amanhecer — Na noite passada, o Conde deixou-me bem cedo e trancou-me em meu próprio quarto. Pouco depois, corri para a escada e olhei pela janela que dá para o sul. Estava ali há q~ meia hora, quando vi alguma coisa saindo`; da janela do quarto do Conde. Recuei e vi-o sair. Senti um choque, ao ver que vestira o terno com que eu viajara para o castelo e levava nas costas o horrível saco que eu vira no aposento das mulheres. Não podia haver dúvida sobre sua intenção: queria que os habitantes da região atribuíssem a mim o que ia fazer.
Resolvi aguardar sua volta e deixei-me ficar longo tempo à janela. Depois, comecei a notar que havia pequenas manchas flutuando ao luar. Olhando-as, senti uma espécie de torpor, uma certa calma. Recostei-me. De repente, porém, ouvi uivos de cães, no vale, e as manchas que pareciam de poeira começaram a assumir novas formas, enquanto dançavam ao luar. Pareciam fantasmas. Fugi, horrorizado e refugiei-me em meu quarto, onde me senti mais seguro.
Umas duas horas depois, ouvi um ruído no quarto do Conde, como o de um choro, prontamente abafado. Sentei-me na cama, desesperado, depois de ter tentado, em vão, abrir a porta.
Enquanto estava sentado, ouvi no pátio gritos agoniados de mulher. Corri à janela. Havia, de fato, uma mulher desgrenhada, de braços estendidos, no portão. Ao me ver na janela, gritou-me, ameaçadora: — Monstro, dê-me meu filho!
E, caindo de joelhos, repetiu as mesmas palavras, de um modo que me cortou o coração.
Do alto, provavelmente da torre, veio a voz do Conde, num sussurro duro, metálico. Seu apelo pareceu ser atendido até muito longe pelo uivo dos lobos. Não se passaram muitos minutos e uma matilha deles apareceu e se lançou sobre a pobre mulher, que foi devorada em poucos instantes.
Que farei? Como escapar desta tortura?
25 de junho, pela manhã — Ainda não vi o Conde à luz do dia. Será que ele dorme enquanto os outros estão despertos, para poder estar acordado quando os outros dormem? Se pudesse entrar em seu quarto! Mas a porta está sempre fechada, não há meio.
Sim, há um meio, se eu me atrevesse. Por que não o imitaria e chegaria à sua janela como ele próprio faz? As probabilidades são mínimas, mas minha situação ainda é mais desesperadora. Vou arriscar. Deus me ajude! Adeus, Mina, se eu falhar! Adeus, meu amigo e segundo pai! Adeus, Mina!
Mesmo dia, mais tarde — Deus me ajudou e voltei são e salvo a este quarto. Aventurei-me enquanto ainda estava sob o impulso da coragem. Dirigi-me à janela que dá para o sul, tirei os sapatos e aventurei-me no caminho perigoso.
Durante o trajeto não olhei para baixo. Conhecia bem a direção e a distância da janela do quarto do Conde e segui para lá o melhor que pude, valendo-me de todas as oportunidades. Não senti tonteira — creio que estava muito excitado — e o tempo pareceu-me ridiculamente reduzido até que me vi de pé no peitoril da janela procurando abri-la. Quando consegui, olhei em torno, procurando o Conde, mas, com surpresa e alegria, fiz uma descoberta. O quarto estava vazio. Os móveis eram semelhantes aos dos aposentos que davam para o sul e estavam cobertos de pó. Procurei a chave, mas não a achei. A única coisa que encontrei foi um monte de moedas de ouro, de diversos países e cobertas de poeiras, como se estivessem ali há muito tempo. Nenhuma tinha menos de trezentos anos.
A um canto do quarto, havia uma pesada porta. Abri-a e vi um corredor, que dava para uma escada em caracol, pela qual desci. No fim da escada, outro corredor escuro, semelhante a um túnel, onde senti cheiro de terra removida há pouco. Afinal encontrei uma pesada porta entreaberta e, passando-a, vi-me numa capela arruinada que tinha sido, evidentemente, usada como cemitério. Procurei por toda a parte, mesmo nas criptas sombrias, cujo aspecto me apertava o coração. Em duas delas, havia apenas fragmentos de esquifes e poeira; na terceira, contudo, fiz uma descoberta.
Ali, numa das grandes caixas, das quais havia cinqüenta ao todo, num monte de terra recentemente escavada, estava o Conde! Estava ou morto ou dormindo, não posso dizer, pois seus olhos estavam abertos e parados, mas sem o aspecto vítreo que lhes dá a morte e as faces tinham o calor da vida, apesar da palidez; os lábios estavam vermelhos como sempre. Mas não havia sinal de movimento, de respiração nem o coração batia. Debrucei-me sobre ele e tentei em vão procurar um sinal de vida. Resolvi ver se as chaves estavam com ele, mas ao revistá-lo, encontrei seus olhos que refletiam tanto ódio, embora inconsciente de minha presença, que fugi e, saltando a janela do quarto do Conde arrastei-me, de novo, pela parede do castelo. Chegando ao meu quarto atirei-me na cama e procurei refletir...
29 de junho — De novo vi o Conde descer pela parede, vestindo meu terno. Não ousei esperá-lo voltar, pois receava ver suas malditas irmãs. Fui para a biblioteca e li até adormecer.
Fui acordado pelo Conde, que me encarava com tristeza profunda, e disse: — Amanhã, meu amigo, devemos nos separar. O senhor regressará à Inglaterra. Eu tenho certo trabalho a fazer e talvez nunca mais nos encontremos. Pela manhã virão os ciganos, que têm de executar alguns trabalhos aqui, e também alguns eslovacos. Quando tiverem partido, minha carruagem virá buscá-lo para levá-lo ao Passo de Borgo, a fim de tomar a diligência.
— Por que não posso partir esta noite? — perguntei-lhe a queima-roupa.
— Porque meu cocheiro e os cavalos estão ausentes.
— Mas eu poderia ir a pé.
— E sua bagagem? — retrucou o Conde, com um sorriso diabólico.
— Posso mandar buscá-la mais tarde.
— Não quero que o senhor fique em minha casa um minuto contra a sua vontade — exclamou o Conde. — Venha comigo, meu jovem amigo!
E, gravemente, segurando a lâmpada, precedeu-me na escada e caminhou até a porta do vestíbulo, onde parou.
— Ouça!
De muito perto, vinha o uivo de lobos. Depois de alguns momentos, o Conde aproximou-se da porta e começou a abri-la, após tirar as pesadas trancas.
Com assombro, vi que a porta não estava fechada a chave. Mas, à medida que ia se abrindo, o uivo dos lobos ia se tornando mais forte e feroz. Compreendi que era inútil lutar contra ele naquele momento.
— Feche a porta! — gritei. — Esperarei até amanhã!
O Conde fechou a porta e voltamos em silêncio para a biblioteca e, um ou dois minutos depois, passei para o meu quarto. Quando ia me deitar, tive a impressão de ouvir um sussurro junto à porta. Aproximei-me na ponta dos pés e ouvi a voz do Conde: — Voltem para o seu lugar! Sua ocasião ainda não chegou. Tenham paciência! Esta noite é minha. Amanhã será de vocês!
Houve uma risada baixa, zombeteira e, furioso, abri a porta e vi do lado de fora as três horríveis mulheres, passando a língua nos lábios. Vendo-me, soltaram uma gargalhada terrível e fugiram.
Voltando ao quarto, caí de jóelhos. Está, pois, tão próximo o meu fim? Senhor, protegei-me!
30 de junho, pela manhã — Talvez sejam estas as últimas palavras que escrevo neste diário. Acordei com o canto dos galos e desci ao vestíbulo. Como a porta não estava fechada a chave na véspera, tinha alguma esperança de fugir. Puxei os pesados ferrolhos e fiz cair os cadeados, mas a pesada porta não se moveu. Todos os meus esforços foram vãos.
Resolvi, então, procurar a chave, custasse o que custasse. Desci mais uma vez, pela parede, até o quarto do Conde. Minha angústia era tanta que não hesitei em arriscar a vida.
O quarto do Conde estava vazio. Desci a escada em caracol que conduzia ao corredor subterrâneo e, de lá, cheguei à capela. O caixão continuava em seu lugar, mas, dessa vez, a tampa estava descida. Levantei-a, com cuidado pois estava disposto, de qualquer modo, a revistar os bolsos do Conde.
O que vi me encheu de horror. Era o Conde mesmo, mas como se tivesse remoçado. Os cabelos e bigodes brancos tinham se tornado grisalhos, a pele mais clara e a boca ainda mais vermelha que sempre, nos lábios gotas de sangue fresco, que escorriam pelo queixo e pescoço. Toquei-o com enorme repulsa, mas era preciso. Em vão remexi-lhe os bolsos; não encontrei as chaves.
Contemplei, depois o Conde. Parecia me olhar com um sorriso sarcástico. Aquele era o ser que eu estava ajudando a levar para Londres, onde, talvez, nos séculos futuros, saciará sua sede de sangue e criará novo e crescente círculo de semi-demônios. A essa idéia, tornei-me presa de um desejo furioso de livrar o mundo de tal monstro. Não havia armas à mão, mas agarrei uma pá, que os trabalhadores estavam usando para encher os caixões e desfechei-lhe uma pancada no rosto odiento. Mas, ao fazer isto, sua cabeça virou-se e seus olhos pareceram me fitar, com todo o seu brilho de basilisco. Essa visão me paralisou e a pá afastou-se, produzindo apenas um corte na testa do Conde. Depois, a pá escapou de minha mão, sobre a tampa do caixote, que se fechou.
Atordoado, fiquei refletindo sobre o que deveria fazer, quando ouvi cantos, vozes que se aproximavam, o ruído de rodas, e estalar de chicotes. Os ciganos e eslovacos a respeito dos quais falara o Conde estavam chegando. Corri para o quarto, dele, disposto a fugir no momento em que a porta fosse aberta. Apurei os ouvidos e escutei, embaixo, o rangido da chave e o ruído da grande porta que se abria. Depois, o barulho de muitos passos, passando por algum corredor. Voltei de novo para a cripta onde talvez pudesse encontrar outra entrada; mas, naquele momento pareceu vir violento sopro de vento e a porta da escada bateu com toda a força. Eis-me de novo prisioneiro e com o cerco apertando em torno de mim.
Enquanto escrevo ouço passos no corredor embaixo e pesos arrastados, sem dúvida os caixões com sua carga de terra. Também escuto pancadas de martelo: é a caixa que está sendo pregada. Agora, posso ouvir passos que se afastam.
A porta foi fechada e ouvi o ruído da chave na fechadura; depois, esta sendo retirada. Outras portas se abrem e fecham...
Do pátio, chegam os ruídos de estalar de chicotes e rodas que se afastam. Os ciganos partem!
Estou sozinho no castelo, com aquelas terríveis mulheres! Não posso ficar! Tenho que tentar descer pelos muros ainda mais longe do que tentei. Levarei algum ouro comigo, posso precisar dele mais tarde. Talvez encontro um meio de sair deste lugar medonho.
Pelo menos, a misericórdia de Deus é melhor do que esses monstros e o precipício é alto e íngreme. A seus pés, um homem pode dormir — como homem. Adeus, todos! Mina!
(Continuação) Acordei na minha própria cama. Se não sonhei, o Conde deve ter me trazido para aqui. Havia algumas pequenas provas de que eu sonhara. Minhas roupas estavam dobradas de modo diferente do que costumo dobrá-las e meu relógio sem corda. Mas isso não constitui prova suficiente. Uma coisa me satisfaz: se o Conde me trouxe para aqui e tirou minha roupa, devia estar com pressa, pois não mexeu em meus bolsos.
18 de maio — Desci, outra vez, à luz do dia, pois preciso saber a verdade. Quando cheguei à porta no alto da estrada, encontrei-a fechada pelo lado de dentro.
Receio que não tenha sido sonho.
19 de maio — Estou em maus lençóis, sem dúvida. Ontem à noite, o Conde me pediu, com bons modos, para escrever três cartas, uma dizendo que meu trabalho aqui já está quase pronto, e que vou regressar dentro de poucos dias; outra dizendo que vou partir no dia seguinte ao da carta, pela manhã, e a terceira dizendo que saí do castelo e cheguei a Bistritz. Na situação atual, seria loucura rebelar-me abertamente contra o Conde, quando me encontro em seu poder. Minha única esperança é ganhar tempo, esperando uma oportunidade que possa surgir. Assim, fingi concordar e perguntei ao Conde que datas deveria pôr nas cartas. Ele refletiu um minuto, depois disse: — A primeira deve ser de 12 de junho, a segunda de 19 e a terceira de 29 de junho.
Deus que me ajude!
28 de maio — Há uma possibilidade de fuga ou, pelo menos, de mandar notícias para a Inglaterra. Um bando de ciganos está acampado no pátio do castelo.
Vou escrever algumas cartas e tentar fazer com que os ciganos as punham no correio. Já falei com eles através da janela do meu quarto, para travar conhecimento. Eles tiraram os chapéus, cumprimentaram-me e fizeram muitos sinais, que, contudo, não pude compreender, como não entendi o que diziam...
Escrevi as cartas. A carta para Mina taquigrafada e outra para o Sr. Hawkins, pedindo-lhe, apenas, para se avistar com Mina, à qual expliquei a situação, mas sem contar os horrores que me cercam e que a iriam mortificar. Se as cartas não seguirem, o Conde também não saberá meu segredo ou a extensão de meu conhecimento...
Atirei as cartas pela janela, junto com uma moeda de ouro, e fiz sinais, indicando que queria que as pusessem no correio. O homem que as apanhou apertou as cartas de encontro ao peito e curvou-se, tirando o chapéu.
O Conde apareceu algum tempo depois. Sentou-se perto de mim e disse, com voz muito calma, enquanto abria duas cartas: — Os ciganos me entregaram estas duas cartas. Veja! Uma é do senhor para meu amigo Peter Hawkins e a outra — viu os símbolos estranhos quando abriu o envelope, fechou a cara e seus olhos brilharam sinistramente — a outra é uma... um ultraje à amizade e à hospitalidade! Não está assinada. Não nos importa, pois.
E, calmamente, atirou a carta e o envelope na chama da lâmpada. Depois, prosseguiu: — Naturalmente, vou enviar a carta para Hawkins, uma vez que foi escrita pelo senhor. Suas cartas são sagradas para mim. Desculpe-me, porque a abri, na ignorância em que estava. Quer sobrescritá-la de novo?
Entregou-me a carta, com toda a cortesia, e não me restava outra coisa senão metê-la de novo no envelope e sobrescritá-la. Quando o Conde saiu do aposento, ouvi o barulho da chave que era girada de leve na fechadura. Um minuto depois, tentei abrir a porta, e vi que estava trancada.
Quando, uma ou duas horas depois, o Conde voltou, teve de me acordar, pois eu dormira no sofá.
— Está cansado, meu amigo? — perguntou, amavelmente. — Vá para a cama. Não posso ter o prazer de conversar esta noite, pois tenho muita coisa que fazer. Mas estou certo que o senhor dormirá.
Fui para o meu quarto, meti-me na cama e, por mais estranho que pareça, dormi sem sonhar.
31 de maio — Quando acordei esta manhã, tive idéia de tirar de minha mala papel e envelope, para metê-los no bolso, a fim de escrever, se aparecesse alguma oportunidade, mas nova e desagradável surpresa me aguardava: tinham desaparecido de minha mala todos os papéis em branco, assim como minhas anotações e todos os meus documentos, tudo que me seria útil quando conseguisse sair do castelo. Também o terno com que eu viajara tinha desaparecido, assim como meu sobretudo.
17 de junho — Esta manhã, quando estava sentado na cama, pensativo, ouvi ruído de chicotadas e de cascos de cavalos no caminho que fica para além do pátio. Corri à janela e avistei dois carretões, puxados cada um por oito cavalos, havendo um eslovaco, com seu chapéu característico, junto de cada parelha. Corri para a porta, pensando em descer e tentar alcançá-los através do vestíbulo principal, que eles poderiam abrir. Nova decepção: minha porta estava fechada pelo lado de fora.
Corri à janela e gritei. Os homens olharam-me estupidamente, não atenderam ao chamado.
24 de junho, antes do amanhecer — Na noite passada, o Conde deixou-me bem cedo e trancou-me em meu próprio quarto. Pouco depois, corri para a escada e olhei pela janela que dá para o sul. Estava ali há q~ meia hora, quando vi alguma coisa saindo`; da janela do quarto do Conde. Recuei e vi-o sair. Senti um choque, ao ver que vestira o terno com que eu viajara para o castelo e levava nas costas o horrível saco que eu vira no aposento das mulheres. Não podia haver dúvida sobre sua intenção: queria que os habitantes da região atribuíssem a mim o que ia fazer.
Resolvi aguardar sua volta e deixei-me ficar longo tempo à janela. Depois, comecei a notar que havia pequenas manchas flutuando ao luar. Olhando-as, senti uma espécie de torpor, uma certa calma. Recostei-me. De repente, porém, ouvi uivos de cães, no vale, e as manchas que pareciam de poeira começaram a assumir novas formas, enquanto dançavam ao luar. Pareciam fantasmas. Fugi, horrorizado e refugiei-me em meu quarto, onde me senti mais seguro.
Umas duas horas depois, ouvi um ruído no quarto do Conde, como o de um choro, prontamente abafado. Sentei-me na cama, desesperado, depois de ter tentado, em vão, abrir a porta.
Enquanto estava sentado, ouvi no pátio gritos agoniados de mulher. Corri à janela. Havia, de fato, uma mulher desgrenhada, de braços estendidos, no portão. Ao me ver na janela, gritou-me, ameaçadora: — Monstro, dê-me meu filho!
E, caindo de joelhos, repetiu as mesmas palavras, de um modo que me cortou o coração.
Do alto, provavelmente da torre, veio a voz do Conde, num sussurro duro, metálico. Seu apelo pareceu ser atendido até muito longe pelo uivo dos lobos. Não se passaram muitos minutos e uma matilha deles apareceu e se lançou sobre a pobre mulher, que foi devorada em poucos instantes.
Que farei? Como escapar desta tortura?
25 de junho, pela manhã — Ainda não vi o Conde à luz do dia. Será que ele dorme enquanto os outros estão despertos, para poder estar acordado quando os outros dormem? Se pudesse entrar em seu quarto! Mas a porta está sempre fechada, não há meio.
Sim, há um meio, se eu me atrevesse. Por que não o imitaria e chegaria à sua janela como ele próprio faz? As probabilidades são mínimas, mas minha situação ainda é mais desesperadora. Vou arriscar. Deus me ajude! Adeus, Mina, se eu falhar! Adeus, meu amigo e segundo pai! Adeus, Mina!
Mesmo dia, mais tarde — Deus me ajudou e voltei são e salvo a este quarto. Aventurei-me enquanto ainda estava sob o impulso da coragem. Dirigi-me à janela que dá para o sul, tirei os sapatos e aventurei-me no caminho perigoso.
Durante o trajeto não olhei para baixo. Conhecia bem a direção e a distância da janela do quarto do Conde e segui para lá o melhor que pude, valendo-me de todas as oportunidades. Não senti tonteira — creio que estava muito excitado — e o tempo pareceu-me ridiculamente reduzido até que me vi de pé no peitoril da janela procurando abri-la. Quando consegui, olhei em torno, procurando o Conde, mas, com surpresa e alegria, fiz uma descoberta. O quarto estava vazio. Os móveis eram semelhantes aos dos aposentos que davam para o sul e estavam cobertos de pó. Procurei a chave, mas não a achei. A única coisa que encontrei foi um monte de moedas de ouro, de diversos países e cobertas de poeiras, como se estivessem ali há muito tempo. Nenhuma tinha menos de trezentos anos.
A um canto do quarto, havia uma pesada porta. Abri-a e vi um corredor, que dava para uma escada em caracol, pela qual desci. No fim da escada, outro corredor escuro, semelhante a um túnel, onde senti cheiro de terra removida há pouco. Afinal encontrei uma pesada porta entreaberta e, passando-a, vi-me numa capela arruinada que tinha sido, evidentemente, usada como cemitério. Procurei por toda a parte, mesmo nas criptas sombrias, cujo aspecto me apertava o coração. Em duas delas, havia apenas fragmentos de esquifes e poeira; na terceira, contudo, fiz uma descoberta.
Ali, numa das grandes caixas, das quais havia cinqüenta ao todo, num monte de terra recentemente escavada, estava o Conde! Estava ou morto ou dormindo, não posso dizer, pois seus olhos estavam abertos e parados, mas sem o aspecto vítreo que lhes dá a morte e as faces tinham o calor da vida, apesar da palidez; os lábios estavam vermelhos como sempre. Mas não havia sinal de movimento, de respiração nem o coração batia. Debrucei-me sobre ele e tentei em vão procurar um sinal de vida. Resolvi ver se as chaves estavam com ele, mas ao revistá-lo, encontrei seus olhos que refletiam tanto ódio, embora inconsciente de minha presença, que fugi e, saltando a janela do quarto do Conde arrastei-me, de novo, pela parede do castelo. Chegando ao meu quarto atirei-me na cama e procurei refletir...
29 de junho — De novo vi o Conde descer pela parede, vestindo meu terno. Não ousei esperá-lo voltar, pois receava ver suas malditas irmãs. Fui para a biblioteca e li até adormecer.
Fui acordado pelo Conde, que me encarava com tristeza profunda, e disse: — Amanhã, meu amigo, devemos nos separar. O senhor regressará à Inglaterra. Eu tenho certo trabalho a fazer e talvez nunca mais nos encontremos. Pela manhã virão os ciganos, que têm de executar alguns trabalhos aqui, e também alguns eslovacos. Quando tiverem partido, minha carruagem virá buscá-lo para levá-lo ao Passo de Borgo, a fim de tomar a diligência.
— Por que não posso partir esta noite? — perguntei-lhe a queima-roupa.
— Porque meu cocheiro e os cavalos estão ausentes.
— Mas eu poderia ir a pé.
— E sua bagagem? — retrucou o Conde, com um sorriso diabólico.
— Posso mandar buscá-la mais tarde.
— Não quero que o senhor fique em minha casa um minuto contra a sua vontade — exclamou o Conde. — Venha comigo, meu jovem amigo!
E, gravemente, segurando a lâmpada, precedeu-me na escada e caminhou até a porta do vestíbulo, onde parou.
— Ouça!
De muito perto, vinha o uivo de lobos. Depois de alguns momentos, o Conde aproximou-se da porta e começou a abri-la, após tirar as pesadas trancas.
Com assombro, vi que a porta não estava fechada a chave. Mas, à medida que ia se abrindo, o uivo dos lobos ia se tornando mais forte e feroz. Compreendi que era inútil lutar contra ele naquele momento.
— Feche a porta! — gritei. — Esperarei até amanhã!
O Conde fechou a porta e voltamos em silêncio para a biblioteca e, um ou dois minutos depois, passei para o meu quarto. Quando ia me deitar, tive a impressão de ouvir um sussurro junto à porta. Aproximei-me na ponta dos pés e ouvi a voz do Conde: — Voltem para o seu lugar! Sua ocasião ainda não chegou. Tenham paciência! Esta noite é minha. Amanhã será de vocês!
Houve uma risada baixa, zombeteira e, furioso, abri a porta e vi do lado de fora as três horríveis mulheres, passando a língua nos lábios. Vendo-me, soltaram uma gargalhada terrível e fugiram.
Voltando ao quarto, caí de jóelhos. Está, pois, tão próximo o meu fim? Senhor, protegei-me!
30 de junho, pela manhã — Talvez sejam estas as últimas palavras que escrevo neste diário. Acordei com o canto dos galos e desci ao vestíbulo. Como a porta não estava fechada a chave na véspera, tinha alguma esperança de fugir. Puxei os pesados ferrolhos e fiz cair os cadeados, mas a pesada porta não se moveu. Todos os meus esforços foram vãos.
Resolvi, então, procurar a chave, custasse o que custasse. Desci mais uma vez, pela parede, até o quarto do Conde. Minha angústia era tanta que não hesitei em arriscar a vida.
O quarto do Conde estava vazio. Desci a escada em caracol que conduzia ao corredor subterrâneo e, de lá, cheguei à capela. O caixão continuava em seu lugar, mas, dessa vez, a tampa estava descida. Levantei-a, com cuidado pois estava disposto, de qualquer modo, a revistar os bolsos do Conde.
O que vi me encheu de horror. Era o Conde mesmo, mas como se tivesse remoçado. Os cabelos e bigodes brancos tinham se tornado grisalhos, a pele mais clara e a boca ainda mais vermelha que sempre, nos lábios gotas de sangue fresco, que escorriam pelo queixo e pescoço. Toquei-o com enorme repulsa, mas era preciso. Em vão remexi-lhe os bolsos; não encontrei as chaves.
Contemplei, depois o Conde. Parecia me olhar com um sorriso sarcástico. Aquele era o ser que eu estava ajudando a levar para Londres, onde, talvez, nos séculos futuros, saciará sua sede de sangue e criará novo e crescente círculo de semi-demônios. A essa idéia, tornei-me presa de um desejo furioso de livrar o mundo de tal monstro. Não havia armas à mão, mas agarrei uma pá, que os trabalhadores estavam usando para encher os caixões e desfechei-lhe uma pancada no rosto odiento. Mas, ao fazer isto, sua cabeça virou-se e seus olhos pareceram me fitar, com todo o seu brilho de basilisco. Essa visão me paralisou e a pá afastou-se, produzindo apenas um corte na testa do Conde. Depois, a pá escapou de minha mão, sobre a tampa do caixote, que se fechou.
Atordoado, fiquei refletindo sobre o que deveria fazer, quando ouvi cantos, vozes que se aproximavam, o ruído de rodas, e estalar de chicotes. Os ciganos e eslovacos a respeito dos quais falara o Conde estavam chegando. Corri para o quarto, dele, disposto a fugir no momento em que a porta fosse aberta. Apurei os ouvidos e escutei, embaixo, o rangido da chave e o ruído da grande porta que se abria. Depois, o barulho de muitos passos, passando por algum corredor. Voltei de novo para a cripta onde talvez pudesse encontrar outra entrada; mas, naquele momento pareceu vir violento sopro de vento e a porta da escada bateu com toda a força. Eis-me de novo prisioneiro e com o cerco apertando em torno de mim.
Enquanto escrevo ouço passos no corredor embaixo e pesos arrastados, sem dúvida os caixões com sua carga de terra. Também escuto pancadas de martelo: é a caixa que está sendo pregada. Agora, posso ouvir passos que se afastam.
A porta foi fechada e ouvi o ruído da chave na fechadura; depois, esta sendo retirada. Outras portas se abrem e fecham...
Do pátio, chegam os ruídos de estalar de chicotes e rodas que se afastam. Os ciganos partem!
Estou sozinho no castelo, com aquelas terríveis mulheres! Não posso ficar! Tenho que tentar descer pelos muros ainda mais longe do que tentei. Levarei algum ouro comigo, posso precisar dele mais tarde. Talvez encontro um meio de sair deste lugar medonho.
Pelo menos, a misericórdia de Deus é melhor do que esses monstros e o precipício é alto e íngreme. A seus pés, um homem pode dormir — como homem. Adeus, todos! Mina!
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