Capítulo quinze
DIÁRIO DO DR. SEWARD
(Continuação) Durante alguns momentos, uma raiva furiosa me dominou; era como se Van Helsing tivesse esbofeteado Lucy, quando ela era viva.
— O senhor está doido? — exclamei.
— Antes estivesse — respondeu ele levantando a cabeça e olhando-me com uma ternura que me fez acalmar um pouco. — Seria preferível a loucura à certeza que tanto me faz sofrer! Acha que eu iria dizer uma coisa destas só para torturá-lo?
— Perdoe-me — pedi-lhe.
— Esta noite, posso provar que, infelizmente, é a verdade. Tem coragem de vir comigo? Se não for verdade, a prova será um alívio; na pior hipótese, não fará mal. Venha, vou lhe dizer o que pretendo fazer. Em primeiro lugar, vamos ver a criança no hospital. O Dr. Vincent, do Hospital do Norte, onde o jornal diz que a criança está, é meu amigo. Deixará dois cientistas examinarem o caso, se não deixar dois amigos. Não lhe diremos nada, mas apenas que desejamos aprender. E depois...
— E depois?
Tirou uma chave do bolso e continuou: — Depois, eu e você passaremos à noite no cemitério onde Lucy está. Esta é a chave de seu túmulo. O homem da empresa funerária me deu, para entregá-la a Arthur.
Senti um aperto no coração, diante da terrível prova. Mas disse que era melhor andar depressa, pois a tarde já ia avançada...
Encontramos a criança acordada e o Dr. Vincent nos mostrou o ferimento no pescoço. Era igualzinho ao que eu observara no pescoço de Lucy.
Perguntamos a Vincent a que atribuía o ferimento e ele respondeu que devia ser a dentada de algum animal, talvez um rato, mas que, de sua parte, estava inclinado a acreditar que fosse algum morcego, muito comum na zona norte de Londres.
— Entre os inofensivos, pode haver algum de outra espécie, fugido do Jardim Zoológico por exemplo — disse ele. — Estas coisas acontecem. Ainda há poucos dias, fugiu um lobo, para aqueles mesmos lados.
— Espero, que quando mandar a criança para casa, advirta a seus pais tomarem muito cuidado — disse Van Helsing, antes de sair.
Quando saímos do hospital, estava anoitecendo.
— Não precisamos correr — disse Van Helsing. — Temos muito tempo.
Jantamos no “Jack Straw’s Castle” de onde saímos mais ou menos às dez horas.
Quando chegamos junto ao cemitério, pulamos o seu muro e, com alguma dificuldade, devido à escuridão, encontramos o jazigo da família Westenra. Van Helsing abriu o portão de ferro e, polidamente, me convidou a entrar em primeiro lugar e, depois de ter fechado o portão, cuidadosamente, tirou da valise, fósforo e uma vela, que acendeu logo. Aquele jazigo que, durante o dia, enfeitado com flores frescas, me parecera lúgubre, alguns dias antes, era horrível à noite, com as flores já murchas e as aranhas reiniciando seu trabalho, entre a pedra escura e as grades enferrujadas.
Levantando a vela, para poder ler as placas dos caixões, Van Helsing certificou-se que estava diante do de Lucy e, depois de ter prendido a vela no chão, sobre um pouco de cera quente, tirou da valise uma chave de fenda.
— Que vai fazer? — perguntei.
— Abrir o caixão. Você precisa se convencer.
Imediatamente, começou a tirar os parafusos, levantou a tampa e o féretro de chumbo apareceu embaixo. Aquilo foi demais para mim. Pareceu-me que seria para a morta uma profanação igual à que teria sido desnudá-la em vida. Cheguei a segurar a mão de Van Helsing, para detê-lo.
— Você vai ver — disse ele, tirando uma serra da valise.
E, depois de fazer uma pequena abertura no caixão de chumbo, com a chave de fenda, nela introduziu a serra e fez uma abertura de uns dois pés, onde introduziu a vela e me mandou olhar.
Aproximei-me e olhei. O caixão estava vazio.
— Está convencido agora, amigo John? — perguntou-me o professor.
— Estou convencido que o corpo de Lucy não está aí dentro — respondi. — Mas isso nada prova. Alguém pode tê-lo retirado.
— Precisamos de outras provas — disse o professor, dando um suspiro. — Venha comigo.
Tornou a fechar o caixão, reuniu todos os seus objetos e meteu-os na valise, inclusive a vela. Depois que salmos do jazigo e que ele fechou a porta pelo lado de fora, ofereceu-me a chave.
— Não quer ficar com ela? — disse. — Assim, terá mais confiança.
— Uma chave não quer dizer nada — retruquei. — Pode haver uma duplicata.
Sem nada dizer, Van Helsing meteu a chave no bolso, depois me disse para vigiar de um lado do cemitério, enquanto ele vigiaria do outro.
Escondi-me atrás de um cipreste e vi o vulto de Van Helsing caminhar entre as árvores e os túmulos até desaparecer.
Esperei muito tempo. Ouvi um relógio distante bater meia-noite, depois uma e duas horas da manhã. Sentia frio e estava furioso com o professor por ter me arrastado aquilo.
De súbito, tive a impressão de ver um vulto, branco movendo-se entre duas árvores escuras do lado do cemitério mais afastado do jazigo; ao mesmo tempo, vi um vulto negro mover-se vindo do lado onde estava o professor e se encaminhar rapidamente rumo ao primeiro. Avancei, também, tropeçando nos túmulos. O céu estava coberto de nuvens e um galo cantou ao longe. Um pouco ao lado, ao longo de uma fila de ciprestes que margeavam o caminho da igreja, tênue e esbranquiçada avançava em direção ao jazigo, que estava escondido pelas árvores, de modo que não vi onde o vulto desapareceu. Corri naquela direção e encontrei o professor com uma criancinha nos braços.
— Está convencido agora? — perguntou-me ele.
— Não! — respondi, de modo agressivo.
— Não está vendo a criança?
— Estou. Mas quem a trouxe aqui? E está ferida?
— Vamos ver — disse ele.
Depois de afastarmo-nos um pouco, entramos numa moita de árvores e acendemos um fósforo, para examinar o pescoço da criança. Não tinha o menor sinal.
— Está vendo? — exclamei, triunfante.
— Chegamos justamente a tempo — disse o professor, satisfeito.
Tínhamos de resolver o que iríamos fazer com a criança. Não podíamos levá-la a um posto policial, para não sermos interrogados. Resolvemos, portanto, levá-la e, quando víssemos um policial, deixá-la, de tal modo que ele não pudesse deixar de encontrá-la. E, realmente, não tardamos muito a ouvir os passos de um e, deixando a criança no caminho, escondemo-nos. O policial ficou muito espantado com o encontro e nós nos afastamos, sem sermos vistos. Por sorte, encontramos um carro de aluguel perto do Spaniards e viemos para a cidade.
Não consegui dormir até agora. Mas preciso ver se durmo algumas horas, pois Van Helsing vem me procurar ao meio-dia. Faz questão que eu o acompanhe em outra expedição.
27 de setembro — Somente às duas horas conseguimos uma oportunidade para nossa tentativa. O enterro realizado ao meio-dia tinha acabado e o coveiro fechou o portão pelo lado de fora. Sabíamos que teríamos até a manhã seguinte para fazer o que quiséssemos, mas o professor me disse que não seria necessário mais de uma hora.
Voltamos ao jazigo. O lugar era menos lúgubre que à noite, mas era um espetáculo insuportável de ver-se, iluminado pelo sol. Van Helsing aproximou-se do caixão de Lucy e eu o segui. Abriu a tampa e sentime dominado por terrível surpresa.
Lá estava Lucy, como a tínhamos visto na noite da véspera do enterro. Parecia mais bela que nunca, e eu não podia acreditar que estivesse morta. Os lábios estavam vermelhos, mais vermelhos que antes, e, nas faces, havia um rubor delicado.
— Está convencido agora? — perguntou Van Helsing, e, enquanto falava estendeu a mão e levantou os lábios da morta, provocando-me um arrepio de horror. — Veja, os dentes estão ainda mais aguçados que antes. Com estes caninos, as criancinhas são mordidas. Acredita agora, amigo John?
De novo, a revolta se apossou de mim. Eu não podia aceitar uma realidade tão horrível.
— Ela pode ter sido colocada aí depois desta madrugada — murmurei.
— Acha mesmo? — retrucou Van Helsing. — Mas ela está morta há uma semana. Depois de tanto tempo, os mortos não têm esse aspecto.
Não encontrei argumentos para refutá-lo. Van Helsing examinava atentamente o rosto da morta, levantando as pálpebras e examinando de novo os dentes. Depois, observou: — É um caso diferente de todos os outros que se tem memória; trata-se de uma dupla vida, que não é o caso comum. Foi mordida pelo vampiro, quando estava em transe, em estado de sonambulismo. Morreu em transe e em transe, também, é não-morta. É nisso que se difere de todos os outros. Habitualmente, quando um não-morto dorme em casa — e fez um gesto sugestivo para mostrar o que é a “casa” de um vampiro — seu rosto mostra o que é, mas esta quando deixa de ser Não-Morta volta dos mortos comuns. Não há maldade aqui, veja, e, por isso, será para mim uma tarefa penosa ter que matá-la em seu sono.
Senti um arrepio de frio, mas refleti que, se ela estava realmente morta, por que a idéia de matá-la me causava horror? Van Helsing naturalmente notou a expressão de meu rosto, pois perguntou, quase jovialmente: — Está acreditando agora?
— Não me force a aceitar tudo ao mesmo tempo — respondi. — Estou disposto a acreditar. Como fará o seu sangrento trabalho?
— Vou cortar-lhe a cabeça e encher sua boca de alho e atravessar-lhe o corpo com um espeto.
Senti um arrepio de horror, à idéia de mutilar o corpo da mulher que eu amara. Depois de ficar pensativo algum tempo, Van Helsing observou: — Por meu gosto, eu acabaria com tudo agora mesmo, pois assim eliminaríamos o perigo para sempre. Mas há o caso de Arthur. Se você, que viu os férimentos no pescoço de Lucy e da criança, que viu o caixão vazio ontem e hoje com o corpo dela, custou a acreditar, imagine ele. Seria uma deslealdade fazer isto sem ele saber. Temos que explicar-lhe tudo. Amanhã à noite, você vai me procurar no Berkeley Hotel, às dez horas. Mandarei chamar também Arthur e aquele simpático americano que doou seu sangue. Mais tarde, teremos todos que agir.
E, assim, fechamos o jazigo, pulamos o muro do cemitério e voltamos a Picadilly.
BILHETE DEIXADO PELO DR. VAN HELSING NO BERKELEY HOTEL E ENDEREÇADO AO DR. JOHN SEWARD
(Não entregue) 27 de setembro.
Amigo John:
Escrevo para o caso de acontecer alguma coisa. Vou sozinho vigiar aquele cemitério. Quero que a Não-Morta, Miss Lucy, não saia esta noite, para amanhã à noite estar mais ansiosa para sair. Por isso, vou levar algumas coisas de que ela não gosta — alho e um crucifixo — e fechar a porta do túmulo. Ela é uma Não-Morta jovem e se aquietará. Não tenho medo quanto a ela. Mas o outro que aqui está e que a tornou Não-Morta, tem o poder de encontrar seu túmulo e achar abrigo. Ele é astucioso. Mesmo nós quatro não poderemos com sua força. Além disso, ele pode convocar seu lobo e outras coisas. Assim, se ele aparecer esta noite, me encontrará, mas só a mim. Mas possivelmente, não tentará ir lá.
Escrevo, portanto para se acontecer alguma coisa... Tome os papéis que estão com este, o diário de Harker e o resto, leia-os, depois procure esse grande Não-Morto e corte-lhe a cabeça e enfie um espeto em seu coração, para que o mundo fique livre dele.
Se assim for, adeus
VAN HELSING
(Continuação) Durante alguns momentos, uma raiva furiosa me dominou; era como se Van Helsing tivesse esbofeteado Lucy, quando ela era viva.
— O senhor está doido? — exclamei.
— Antes estivesse — respondeu ele levantando a cabeça e olhando-me com uma ternura que me fez acalmar um pouco. — Seria preferível a loucura à certeza que tanto me faz sofrer! Acha que eu iria dizer uma coisa destas só para torturá-lo?
— Perdoe-me — pedi-lhe.
— Esta noite, posso provar que, infelizmente, é a verdade. Tem coragem de vir comigo? Se não for verdade, a prova será um alívio; na pior hipótese, não fará mal. Venha, vou lhe dizer o que pretendo fazer. Em primeiro lugar, vamos ver a criança no hospital. O Dr. Vincent, do Hospital do Norte, onde o jornal diz que a criança está, é meu amigo. Deixará dois cientistas examinarem o caso, se não deixar dois amigos. Não lhe diremos nada, mas apenas que desejamos aprender. E depois...
— E depois?
Tirou uma chave do bolso e continuou: — Depois, eu e você passaremos à noite no cemitério onde Lucy está. Esta é a chave de seu túmulo. O homem da empresa funerária me deu, para entregá-la a Arthur.
Senti um aperto no coração, diante da terrível prova. Mas disse que era melhor andar depressa, pois a tarde já ia avançada...
Encontramos a criança acordada e o Dr. Vincent nos mostrou o ferimento no pescoço. Era igualzinho ao que eu observara no pescoço de Lucy.
Perguntamos a Vincent a que atribuía o ferimento e ele respondeu que devia ser a dentada de algum animal, talvez um rato, mas que, de sua parte, estava inclinado a acreditar que fosse algum morcego, muito comum na zona norte de Londres.
— Entre os inofensivos, pode haver algum de outra espécie, fugido do Jardim Zoológico por exemplo — disse ele. — Estas coisas acontecem. Ainda há poucos dias, fugiu um lobo, para aqueles mesmos lados.
— Espero, que quando mandar a criança para casa, advirta a seus pais tomarem muito cuidado — disse Van Helsing, antes de sair.
Quando saímos do hospital, estava anoitecendo.
— Não precisamos correr — disse Van Helsing. — Temos muito tempo.
Jantamos no “Jack Straw’s Castle” de onde saímos mais ou menos às dez horas.
Quando chegamos junto ao cemitério, pulamos o seu muro e, com alguma dificuldade, devido à escuridão, encontramos o jazigo da família Westenra. Van Helsing abriu o portão de ferro e, polidamente, me convidou a entrar em primeiro lugar e, depois de ter fechado o portão, cuidadosamente, tirou da valise, fósforo e uma vela, que acendeu logo. Aquele jazigo que, durante o dia, enfeitado com flores frescas, me parecera lúgubre, alguns dias antes, era horrível à noite, com as flores já murchas e as aranhas reiniciando seu trabalho, entre a pedra escura e as grades enferrujadas.
Levantando a vela, para poder ler as placas dos caixões, Van Helsing certificou-se que estava diante do de Lucy e, depois de ter prendido a vela no chão, sobre um pouco de cera quente, tirou da valise uma chave de fenda.
— Que vai fazer? — perguntei.
— Abrir o caixão. Você precisa se convencer.
Imediatamente, começou a tirar os parafusos, levantou a tampa e o féretro de chumbo apareceu embaixo. Aquilo foi demais para mim. Pareceu-me que seria para a morta uma profanação igual à que teria sido desnudá-la em vida. Cheguei a segurar a mão de Van Helsing, para detê-lo.
— Você vai ver — disse ele, tirando uma serra da valise.
E, depois de fazer uma pequena abertura no caixão de chumbo, com a chave de fenda, nela introduziu a serra e fez uma abertura de uns dois pés, onde introduziu a vela e me mandou olhar.
Aproximei-me e olhei. O caixão estava vazio.
— Está convencido agora, amigo John? — perguntou-me o professor.
— Estou convencido que o corpo de Lucy não está aí dentro — respondi. — Mas isso nada prova. Alguém pode tê-lo retirado.
— Precisamos de outras provas — disse o professor, dando um suspiro. — Venha comigo.
Tornou a fechar o caixão, reuniu todos os seus objetos e meteu-os na valise, inclusive a vela. Depois que salmos do jazigo e que ele fechou a porta pelo lado de fora, ofereceu-me a chave.
— Não quer ficar com ela? — disse. — Assim, terá mais confiança.
— Uma chave não quer dizer nada — retruquei. — Pode haver uma duplicata.
Sem nada dizer, Van Helsing meteu a chave no bolso, depois me disse para vigiar de um lado do cemitério, enquanto ele vigiaria do outro.
Escondi-me atrás de um cipreste e vi o vulto de Van Helsing caminhar entre as árvores e os túmulos até desaparecer.
Esperei muito tempo. Ouvi um relógio distante bater meia-noite, depois uma e duas horas da manhã. Sentia frio e estava furioso com o professor por ter me arrastado aquilo.
De súbito, tive a impressão de ver um vulto, branco movendo-se entre duas árvores escuras do lado do cemitério mais afastado do jazigo; ao mesmo tempo, vi um vulto negro mover-se vindo do lado onde estava o professor e se encaminhar rapidamente rumo ao primeiro. Avancei, também, tropeçando nos túmulos. O céu estava coberto de nuvens e um galo cantou ao longe. Um pouco ao lado, ao longo de uma fila de ciprestes que margeavam o caminho da igreja, tênue e esbranquiçada avançava em direção ao jazigo, que estava escondido pelas árvores, de modo que não vi onde o vulto desapareceu. Corri naquela direção e encontrei o professor com uma criancinha nos braços.
— Está convencido agora? — perguntou-me ele.
— Não! — respondi, de modo agressivo.
— Não está vendo a criança?
— Estou. Mas quem a trouxe aqui? E está ferida?
— Vamos ver — disse ele.
Depois de afastarmo-nos um pouco, entramos numa moita de árvores e acendemos um fósforo, para examinar o pescoço da criança. Não tinha o menor sinal.
— Está vendo? — exclamei, triunfante.
— Chegamos justamente a tempo — disse o professor, satisfeito.
Tínhamos de resolver o que iríamos fazer com a criança. Não podíamos levá-la a um posto policial, para não sermos interrogados. Resolvemos, portanto, levá-la e, quando víssemos um policial, deixá-la, de tal modo que ele não pudesse deixar de encontrá-la. E, realmente, não tardamos muito a ouvir os passos de um e, deixando a criança no caminho, escondemo-nos. O policial ficou muito espantado com o encontro e nós nos afastamos, sem sermos vistos. Por sorte, encontramos um carro de aluguel perto do Spaniards e viemos para a cidade.
Não consegui dormir até agora. Mas preciso ver se durmo algumas horas, pois Van Helsing vem me procurar ao meio-dia. Faz questão que eu o acompanhe em outra expedição.
27 de setembro — Somente às duas horas conseguimos uma oportunidade para nossa tentativa. O enterro realizado ao meio-dia tinha acabado e o coveiro fechou o portão pelo lado de fora. Sabíamos que teríamos até a manhã seguinte para fazer o que quiséssemos, mas o professor me disse que não seria necessário mais de uma hora.
Voltamos ao jazigo. O lugar era menos lúgubre que à noite, mas era um espetáculo insuportável de ver-se, iluminado pelo sol. Van Helsing aproximou-se do caixão de Lucy e eu o segui. Abriu a tampa e sentime dominado por terrível surpresa.
Lá estava Lucy, como a tínhamos visto na noite da véspera do enterro. Parecia mais bela que nunca, e eu não podia acreditar que estivesse morta. Os lábios estavam vermelhos, mais vermelhos que antes, e, nas faces, havia um rubor delicado.
— Está convencido agora? — perguntou Van Helsing, e, enquanto falava estendeu a mão e levantou os lábios da morta, provocando-me um arrepio de horror. — Veja, os dentes estão ainda mais aguçados que antes. Com estes caninos, as criancinhas são mordidas. Acredita agora, amigo John?
De novo, a revolta se apossou de mim. Eu não podia aceitar uma realidade tão horrível.
— Ela pode ter sido colocada aí depois desta madrugada — murmurei.
— Acha mesmo? — retrucou Van Helsing. — Mas ela está morta há uma semana. Depois de tanto tempo, os mortos não têm esse aspecto.
Não encontrei argumentos para refutá-lo. Van Helsing examinava atentamente o rosto da morta, levantando as pálpebras e examinando de novo os dentes. Depois, observou: — É um caso diferente de todos os outros que se tem memória; trata-se de uma dupla vida, que não é o caso comum. Foi mordida pelo vampiro, quando estava em transe, em estado de sonambulismo. Morreu em transe e em transe, também, é não-morta. É nisso que se difere de todos os outros. Habitualmente, quando um não-morto dorme em casa — e fez um gesto sugestivo para mostrar o que é a “casa” de um vampiro — seu rosto mostra o que é, mas esta quando deixa de ser Não-Morta volta dos mortos comuns. Não há maldade aqui, veja, e, por isso, será para mim uma tarefa penosa ter que matá-la em seu sono.
Senti um arrepio de frio, mas refleti que, se ela estava realmente morta, por que a idéia de matá-la me causava horror? Van Helsing naturalmente notou a expressão de meu rosto, pois perguntou, quase jovialmente: — Está acreditando agora?
— Não me force a aceitar tudo ao mesmo tempo — respondi. — Estou disposto a acreditar. Como fará o seu sangrento trabalho?
— Vou cortar-lhe a cabeça e encher sua boca de alho e atravessar-lhe o corpo com um espeto.
Senti um arrepio de horror, à idéia de mutilar o corpo da mulher que eu amara. Depois de ficar pensativo algum tempo, Van Helsing observou: — Por meu gosto, eu acabaria com tudo agora mesmo, pois assim eliminaríamos o perigo para sempre. Mas há o caso de Arthur. Se você, que viu os férimentos no pescoço de Lucy e da criança, que viu o caixão vazio ontem e hoje com o corpo dela, custou a acreditar, imagine ele. Seria uma deslealdade fazer isto sem ele saber. Temos que explicar-lhe tudo. Amanhã à noite, você vai me procurar no Berkeley Hotel, às dez horas. Mandarei chamar também Arthur e aquele simpático americano que doou seu sangue. Mais tarde, teremos todos que agir.
E, assim, fechamos o jazigo, pulamos o muro do cemitério e voltamos a Picadilly.
BILHETE DEIXADO PELO DR. VAN HELSING NO BERKELEY HOTEL E ENDEREÇADO AO DR. JOHN SEWARD
(Não entregue) 27 de setembro.
Amigo John:
Escrevo para o caso de acontecer alguma coisa. Vou sozinho vigiar aquele cemitério. Quero que a Não-Morta, Miss Lucy, não saia esta noite, para amanhã à noite estar mais ansiosa para sair. Por isso, vou levar algumas coisas de que ela não gosta — alho e um crucifixo — e fechar a porta do túmulo. Ela é uma Não-Morta jovem e se aquietará. Não tenho medo quanto a ela. Mas o outro que aqui está e que a tornou Não-Morta, tem o poder de encontrar seu túmulo e achar abrigo. Ele é astucioso. Mesmo nós quatro não poderemos com sua força. Além disso, ele pode convocar seu lobo e outras coisas. Assim, se ele aparecer esta noite, me encontrará, mas só a mim. Mas possivelmente, não tentará ir lá.
Escrevo, portanto para se acontecer alguma coisa... Tome os papéis que estão com este, o diário de Harker e o resto, leia-os, depois procure esse grande Não-Morto e corte-lhe a cabeça e enfie um espeto em seu coração, para que o mundo fique livre dele.
Se assim for, adeus
VAN HELSING
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